Depois de um final de tarde em que o mote “Escrevo o que quero escrever, nunca escrevo o que quero” acabou por desembocar em sucessivas abordagens sobre as relações íntimas entre a literatura e a política (no sentido mais lato do termo, quero acreditar), e de uma autêntica sessão de esclarecimento durante o jantar (com os bastidores da fundação de um jornal ou da Revolução de Abril na ordem de trabalhos), a minha noite ficou marcada, pela discreta leitura de poemas, na sala onde teriam sido lidos para uma audiência mais alargada.

Éramos sete. Uma frase ficou-me a boiar nas ideias, autêntica ponte com as intervenções da tarde: «sou a experiência do Inferno». Se disser que é de um poema de Ashraf Fayadh, condenado à morte na Arábia Saudita, que depois viu a pena “comutada” para oito anos de cárcere e oitocentas chicotadas, tudo fica mais claro. A acusação é de «promover o ateísmo através da poesia, antes que me esqueça»…

Recordarei também uma tartaruga, a tartaruga de Bob Wilson, retirada de um espectáculo do encenador para um poema. Uma tartaruga que leva mais de 30 muntos a cruzar o palco, ao contrário do coelho, sempre atrasado, sempre com receio de deixar fugir o que já passou. Lembras-te Alice? Não, raramente é tarde de mais para visitar o País das Maravilhas, miúda…

Numa extraordinária apresentação de Clave de Sol – Chave de Sombra: Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, uma obra monumental em torno das tarefas literárias do escritor, Teresa Martins Marques, a autora, conta-nos diversos episódios. Não resisto a um. Escreveu David, como encontrou um livro de Paul Valéry, o começou a ler quase ao acaso e, no dia seguinte, a morte do autor francês é notícia impressa. «Passei toda a noite a velar um morto», terá confessado. O que Teresa fez, foi mergulhar nos seus diários. Valeu a pena. «Morreu hoje Paul Valéry; nunca li nada dele. Amanhã tenho de procurar um livro dele». Nem só as pedras dos mitos escorregam no declive, quase lá no topo…

Sexta-feira de manhã, lançamento de novos livros. Ivo Machado, sobre o romance de estreia de Nuno Costa Santos, Céu nublado, com boas abertas, postula: «o ilhéu é, por excelência, um animal de regressos». Não sei se cada homem é uma ilha, se nenhum homem é uma ilha (a alternativa seria, talvez, uma península?), se há homens que regem dentro de si continentes enormes e múltiplos, se cada homem é um mundo, por si só. Sei que todos regressamos, sempre, a uma certa matriz, uma geografia pessoal.

Teresa Martins Marques, na intervenção de dia 25 que já referi, falava sem pudor sobre a personalidade do autor de Gaivotas em Terra e da influência da sua relação com mãe. «Está tudo na infância», deixava escapar, já não exclusivamente sobre ele. Sobre todos. Logo no início, ouço que David morreu a 16 de Junho 1996. Não sabia. Nem hoje, nem nesse dia, em que festejei os meus exactos 16 anos.

Sete homens numa sala. A lerem poemas entre si. Bom, há quem conte anedotas, com menos jeito até…