Elas estavam lá, antes da primeira mesa de debates. Elas ficaram lá, depois da última. Muito direitas e esguias, dentro de jarras de vidro transparente, pose altiva, pétalas reflectindo as luzes da sala. Vieram escritores, sentaram-se, ergueram a voz, contaram histórias, palavras a pairar no silêncio do público atento, ou esmagadas pelo riso que se levanta da plateia como uma onda. Elas estavam ali a todas as horas, na linha da frente. Guarda-costas das conversas. Sentinelas vegetais.

Se alguém quiser verdadeiramente saber o que foram as Correntes d’Escritas de 2016, é com elas que deve falar. Talvez já lá não estejam, em cima do palco. Quase de certeza que já lá não estão. No momento em que escrevo, a festa acabou. Os espectadores regressaram a casa, cheios de imagens na cabeça e novas vontades de ler velhos livros. Ou velhas vontades de ler livros novos. Voltaram a casa com experiências alheias a que se agarrarão no resto do ano, quando menos esperarem. Os escritores, esses, fazem as malas, preparam-se para partir, despedem-se dos amigos no átrio do hotel, trocam endereços, números de telefone, despedem-se até para o ano, ou até breve, ou até já. O palco do teatro deve ter sido limpo, arrumado, varrido. Alguém decerto recolheu as tulipas amarelas, enfiou-as em sacos do lixo, colocou-as em contentores que as levarão para onde vai o resto do que sobra dos dias.

E no entanto, elas sabem. Elas ouviram tudo. Transportam com elas o segredo do que se passou aqui. Foram elas a muralha entre o público e os escritores. Muralha amena. Muralha aberta. Foram elas as testemunhas de algo maior, que as ultrapassa, mas que de certa forma absorvem e simbolizam, na sua inocência de seres não-pensantes.

Daqui a muitos anos, continuaremos a recordar o que alguns participantes disseram de forma inspirada, em exercícios perfeitos de inteligência e lucidez; lembraremos a manhã em que uma autora de repente comoveu um teatro inteiro, ao falar do avô guardador de livros e dos lugares que estes ocupam na vida de um leitor; evocaremos aquela sessão que estava a rebentar pelas costuras, e as pessoas ainda assim felizes de se poderem sentar nos degraus da escada, a ouvir, sorrindo de prazer.

As Correntes nunca acabam no dia em que acabam. Continuam de outra forma, mais fluida, menos visível. São aquilo que levamos da Póvoa e não pesa na mala. A mala que já fiz, há meia hora, depois do pequeno-almoço de domingo. Falta só desligar o computador. As Correntes, essas, ficam acesas. E sei que as associarei sempre ao brilho amarelo das tulipas.

Até para o ano.