O verso de António Carlos Cortez, em Animais Feridos: “apenas a certeza de que nenhum verso salvará ninguém” deu mote a esta mesa moderada por Anabela Mota Ribeiro.

João de Melo começou por assinalar que “quer queiramos quer não, ainda estamos no tempo do romantismo e acreditamos na salvação pela linguagem, nomeadamente pela poesia”.

O autor revelou que “um dos dramas que eu vivo na minha relação com a linguagem e com as palavras esteja muito no facto da minha consciência viva de que as palavras com que trabalho muito e repetidamente estão permanentemente aquém daquilo que temos para dizer”.

O escritor natural dos Açores recuou à sua infância e partilhou com o público a sua “grande aventura em termos de ilusão pura que veio do facto de ter tido uma educação religiosa do mais tradicional que se possa imaginar e ter acreditado profundamente não apenas na religião mas também na existência do inferno”.

Na adolescência, começou “lentamente” a perder a sua fé e, nessa altura, “a Bíblia foi para mim o grande texto literário” e acabou por ser expulso do seminário e tornou-se agnóstico.

João de Melo justifica o seu encontro com a literatura, que agarra a sua vida para sempre, como o substituto da religião que perdeu: “é uma espécie de religião outra que me permite pegar na primeira religião e subvertê-la, contestá-la e ridicularizá-la, numa esperança total de, pela palavra e pela linguagem, chegar a algum lado”.

Terminou transmitindo que “nunca escrevi para não morrer nem para continuar vivo. Percebi que a literatura alguma utilidade havia de ter entre nós. Se calhar, nenhuma. A literatura não servir para nada mas servir para alguém”. Neste sentido, confessou: “orgulho-me muito mais dos belíssimos grandes livros que li do que os pequenos grandes livros que escrevi”.

Miguel-Manso, estreante no Correntes, referiu-se à poesia como salvação contando um episódio que deu origem à sua criação poética. O poema resultante chama-se “Anti mundo” e é dedicado ao seu enteado. Perante a impossibilidade de ficar com um balão que voou, a criança disse-lhe “escreve um poema”.

O autor, um dos oito finalistas ao Prémio Casino da Póvoa coma obra Persianas, expressou-se ainda sobre a morte: “morte virá mas a partir do momento em que conseguirmos servir-nos de alguma coisa que torne a coisa suportável. E se, ainda por cima, conseguirmos construir alguma coisa que vai cair no esquecimento mas que ainda assim o exercício de a construir, erguer e dar por um curto espaço de tempo a alguém valerá alguma coisa, não valendo nada. Mas, assim a morte tem alguma coisa que levar. Esse é o grande trabalho de alguém que escreve e se dá ao trabalho de viver: que a morte venha levar alguma coisa”.

Ondjaki começou por revelar que houve muitas palavras que o salvaram e referiu que “um texto, por vezes, é um texto que nos aparece cheio de amigos”, acrescentando que “a melancolia das histórias que desconheço faz-me colecionar histórias, o tempo que tudo consome, assusta, ameaça e, em vez de lutarmos em vento contrário, prefiro acreditar que é melhor atirar palavras ao tempo”.

O escritor foi partilhando sucessivas histórias com o público e transmitindo as suas mensagens: “na literatura, como na vida, raramente existe o «era só isto que eu tinha», há sempre mais, muito mais para ser contado. A vida como a literatura vai trazendo aos poucos as segundas histórias”; “as pessoas são como canoas mas ao contrário: limpa-se muito a parte de fora e o caruncho cresce na parte de dentro”; “as histórias, os livros, a vida é uma e a mesma coisa”; “contar não é apenas lembrar nem reviver, é uma homenagem que se presta à relação entre a vida e as pessoas”.

Terminou com a história de um coveiro que lê aos mortos porque “as histórias são maiores do que a morte”.

Sérgio Godinho começou por confidenciar que quanto mais vem ao Correntes, mais gosta, e ainda que quer muito ler o livro Animais Feridos, de onde foi retirado o verso da mesa.

Apesar de atualmente escrever mais prosa (amanhã será lançado o último livro Coração Mais que Perfeito), o escritor e músico revelou que já “pratiquei e pratico a poesia, sobretudo a poesia das canções”. Explicou que procura “com a música chegar à poesia. Começo pela música e depois quando a palavra existe ela já se vem deitar numa cama musical. Esta é a chave, uma chave de muitos acessos”.

Referiu-se a um certo conceito da canção como podendo ser “salvadora do mundo, poder salvar alguém” que “sempre” lhe causou “perplexidade e desconfiança”, pois foi aprendendo que “ninguém salva ninguém, nenhum verso”.

Sérgio Godinho transmitiu que gosta do poder transformador da canção: “pegar numa frase, especial ou banal, e dar-lhe outras vidas, vê-la noutra face do prisma, em várias faces do prisma. Gosto muito da imagem do prisma e do poliedro em que se vai descobrindo uma realidade múltipla em vários olhares. Estas podem não salvar ninguém mas pelo menos mantem-nas muitas vezes à tona”.

A este propósito, leu um poema da sua autoria “Corpo à tona” que retrata “a forma como vejo as coisas na minha vida”, concluindo que “algum verso salvou alguém nem que esse alguém tenha sido eu mesmo”.

Esta sessão contou ainda com a presença de António Carlos Cortez que fez questão de manifestar a sua alegria, espanto e gratidão pelas interpretações que os elementos da mesa fizeram ao seu verso.

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