Este é o último “Correntes D’Escritas” por cuja organização sou responsável. Por isso, será a última vez em que terão a maçada de me ouvir, no exercício de um dever de cortesia que, de início, converti num atrevido exercício de participação, levando-vos a ouvir considerações, impertinências, desafios e até propostas sobre temáticas tão diversas que só podem ser a ingénua confissão de que creio possível um outro mundo, seja ele o da minha cidade, seja aquele que nos rodeia.

É que eu acredito – quando vos leio e a muitos outros autores – que a salvação do mundo não é um exclusivo do imaginário com que vocês constroem a trama de um romance, ou de um tratado de filosofia política, ou dessa outra real realidade a que chamamos poesia.

Um mundo melhor – que todos nós, em diferentes escalas e meios, vivemos com crescente desesperança – tem de sair da construção intelectual (em que a preservamos) para o terreno concreto das nossas vidas, sem medo de se constipar na primeira corrente de ar que lhe surja pela frente.

Eu, atrevidamente, assim fiz. Desde há 20 anos, quando decidi tirar da círculo da tertúlia, onde partilhava reflexão, o projecto político que ali construí em apaixonados debates sobre a cidade – que caminhava, desnorteada, para o abismo da descaracterização, da irrelevância, do declínio.

E assumi, desde logo, que a cultura era ferramenta principal, indispensável, no trabalho de regeneração a que urgia deitar mãos. Porque por ela passava o modelo de cidade que, antes do desvario, fizera da Póvoa de Varzim o encanto de todo o norte, a cosmopolita estância de veraneio que, pioneira na comercialização do lazer, construiu em torno dele um ambiente de sedução a que não foram indiferentes, nos séculos XIX e XX, várias das grandes figuras das nossas letras – Camilo, António Nobre, Régio, Agustina, Manoel de Oliveira, entre outros.

“Cidade da Cultura e do Lazer” – assim dizíamos, na política proclamação desta necessidade de recuperarmos, revitalizada, a velha alma da comunidade, que agonizava nos escombros do imenso estaleiro em que a cidade se convertera, com o corpo já tão irreconhecível que, literalmente, “nem sabia de que terra era”.

“Dar escala humana à cidade” – assim proclamávamos. E, em nome desse princípio, a cidade passou a ser mais do cidadão-peão que do automóvel; e, porque não é só com os pés que as cidades se conhecem (como ensinou Unamuno), mas é também com os pés que as cidades se sentem e se vivem, ao peão dedicámos não apenas as ruas centrais, os largos e as praças, mas também circuitos organizados para o passeio, a visitação e a compra; e porque a história das comunidades se deve contar na rua, nas ruas colocámos, em forma de arte, os símbolos maiores da nossa identidade – marítima e piscatória; e com o mar nos reconciliamos, passando a usufruir de uma proximidade que nos estava vedada por caóticos e alongados armazéns portuários cuja velha presença frente à enseada era aceite com a natural resignação de quem se conforma com a perda desta relação original; e assim se tornou mais nítido o fresco ar da maresia e a policromia das vistas do mar Atlântico.

E depressa constatámos que esta luta, que diziam impossível, foi abraçada pelo povo, que crescentemente se revia na velha cidade nova que progressivamente lhe dávamos a usufruir. E tudo isto, amigos, foi um projecto político que, passando pelo urbanismo, era de raiz essencialmente comportamental e cultural.

Nós sabíamos que as cidades, hoje centro de uma competição global, se afirmam pela sua identidade, em torno da qual definem uma vocação (naquilo que sabem fazer bem, de preferência melhor que as outras), e nessa diferença ancoram a sua capacidade competitiva.

Para que serve a minha cidade? O que é que a minha cidade faz, ou pode vir a fazer, melhor que as outras? Em que é que a minha cidade é diferente? Sim, porque se for igual às outras de nada vale: quem vê uma, vê todas.

A Cultura e o Lazer, na diversidade das expressões que hoje concretizam este conceito, foram o mote para o trabalho que aqui realizámos. “Objectivo estratégico”, “vector estratégico de desenvolvimento” – assim lhe chamaram os especialistas em planeamento territorial e urbano, que se não cansaram de tecer encómios a um trabalho que foi dirigido pelas ideias simples que vos expus, bebidas em vasta leitura, muita viagem e longa vivência meditativa.

A páginas tantas, numa cidade que festejava o reencontro consigo mesma, surgiram vocês, desafiados a passar uns dias nesta pequena terra, habitualmente ventosa, de um norte que, em Fevereiro, costuma ser frio. E a tal cidade que, nos iniciais 6 anos deste projecto, fizera cultura urbana na forma como organizou o espaço público para favorecer a socialização e a convivialidade, passou a acolher, desde esse mítico 2000, os Encontros de Escritores de Expressão Ibérica, uma iniciativa que muitos, antes e nos tempos iniciais, consideraram utópica e desproporcionada e condenada ao fracasso, mas que, e muito graças a vocês, depressa se consolidou como um projecto cultural plenamente adequado ao meio e, por isso, destinado ao futuro.

 Nesta cidade que adoptara a Cultura e o Lazer como instrumentos para o seu desenvolvimento (capazes, portanto, de se assumir como aquilo a que hoje se chama “activo económico”, gerador de riqueza e de bem-estar), o “Correntes” surgiu como um facto relevante (e justamente relevado), associando a cidade a um dos mais correntes, comuns e apreciados produtos culturais e expressões de cultura – o livro. A nossa biblioteca é um excelente polo de informação e difusão cultural, que com este objectivo adoptou todos os meios da modernidade tecnológica mas nunca esqueceu que o livro, e em suporte de papel, é a sua matriz – presente, de resto, nas extensões que o tornam acessível a toda a população.

O mesmo fizeram as escolas, e não apenas na sede dos agrupamentos escolares, de modo que o livro é um bem com que as nossas crianças desde muito cedo se familiarizam – como muitos de vocês têm constatado nas visitas que, por estes dias, realizam, ou nas sessões de apresentação de novos livros, que em regra passam por esta cidade, onde têm por certo o bom acolhimento de leitores fieis. A nossa Feira do Livro adquiriu, por isso, uma dimensão e uma expressão económica que excedem, em muito, a posição da cidade no ordenamento populacional. No contexto das muitas expressões em que se desdobra o conceito “Cultura e Lazer”, o livro é, claramente, uma das marcas, e das mais relevantes, a par da música.

Cidade do Livro – sim, a Póvoa de Varzim é isso, que é como quem diz: cidade de leitores, cidade de autores, cidade de editores, cidade de livreiros, cidade de jornalistas e críticos literários, enfim, cidade de todos aqueles que, a qualquer título relacionados com o livro, contribuíram para a criação desta marca identificadora da Póvoa de Varzim. E uma cidade que lê é uma cidade mais culta e mais livre.

A todos quero, por isso, deixar aqui o meu público agradecimento pela vossa anuência e participação regular.

Quero também deixar aqui uma palavra sobre o contributo da cultura para a recuperação da economia. Já vos disse quanto ela é importante entre nós, que nela centrámos o projecto político de afirmação da cidade. Poderia dizer-vos quanto o turismo, e especificamente o de matriz cultural, confirma que a cultura vale dinheiro: 40% do turismo em todo o mundo tem motivações culturais e a Europa é o maior beneficiário desse fluxo crescente, que tem no património, nos museus, e nos festivais – em síntese, nas cidades – o grande definidor de rotas e calendários. Apesar de tudo, raramente os programas eleitorais de quem se candidata a governar-nos dedicam à cultura mais do que generalidades, e poucas.

Lembro aqui que, na abertura do Correntes de 2006, vos confessei a minha esperança de ver alguém ser eleito, neste País, para a chefia do governo em nome de um projecto centrado na cultura. E em 2010, ainda antes de eclodir a crise que nos colocou na emergência de hoje, eu reclamava, convosco, para a cultura a oportunidade de um contributo estrutural para a superação da crise. E citava a crescente importância das indústrias criativas, o contributo da cultura para a inclusão, para a (re)qualificação dos recursos humanos, para a defesa da identidade e do património, para o reforço da confiança e da capacidade empreendedora dos cidadãos.

Pois bem: transpondo esses princípios para o campo concreto da economia urbana, que será dominante neste século, quero lembrar que em Guimarães, recente Capital Europeia da Cultura, cada euro investido gerou retorno de oito (no turismo, no comércio, nos negócios…), além de ter mudado por completo (física e espiritualmente) a cidade, e de essa mudança ser duradoura. Aliás, na Europa, a cultura gera 4,5% do PIB e emprega 8,5 milhões de pessoas – tendência que deverá acentuar-se com o reforço em 37% do orçamento europeu para a cultura no período entre 2014 e 2020, apesar de actualmente o orçamento comum lhe dedicar apenas 0.05%.

A Europa percebeu – tarde, mas percebeu – que a cultura, produto naturalmente protegido das muitas concorrências que afectam os demais sectores económicos, tem excepcionais potencialidades para fomentar o crescimento económico, além de, nestes tempos difíceis, poder ajudar a manter o bem estar e a esperança no futuro.

A cultura não é luxo”- disse, recentemente, no Fórum de Avignon, a comissária europeia para o sector, que acrescentou: “É um investimento necessário para garantir o funcionamento sadio da sociedade”. Daí a proposta, que referi, do significativo aumento da dotação orçamental para os próximos anos. Porque na Europa ainda há (cada vez mais) quem acredite que, seja ou não de Jean Monnet, um dos fundadores da União Europeia, a célebre frase “ e se fosse necessário refazer tudo, começaria pela cultura”, a crise que vivemos reclama que tudo se repense e a cultura seja colocada no coração da Europa, porque só ela pode unir em torno de um projecto comum as diversidades que se enfrentam.

Bem ao contrário da Europa, em cujo PIB a cultura já pesa 4,5%, entre nós o contributo do sector cultural não vai além de 1,4%, seguindo uma curva descendente que desde 2005 ninguém travou. Lembro, a título de exemplo, que em 2006 o sector cultural e criativo empregava, em Portugal, 127.000 pessoas e era responsável por 2,8% da riqueza criada no nosso país, para a qual dava um contributo superior ao da indústria têxtil e de vestuário ou da indústria de alimentação e bebidas.

É mais visível agora, mas tem origens distantes, a desvalorização da cultura no contexto das políticas públicas portuguesas.

A despromoção de Ministério a Secretaria de Estado é, nos planos simbólico e material, a confirmação de que a crise empurrou a cultura para segundo plano. Ora, do que disse decorre o erro desta estratégia, que necessita ser rapidamente corrigida: sê-lo-á talvez a partir do próximo ano, com o reforço do orçamento comunitário para o sector, mas devia ser uma prioridade nossa, assumida como instrumento de combate à crise.

A minha terceira e última palavra é uma breve e ligeira incursão nos mecanismos intelectuais que suportam decisões políticas tão evidentemente erradas. E para tanto valho-me da leitura de um ensaio, de 50 densas páginas, que Ortega y Gasset (esse grande filosofo e escritor espanhol cujo pensamento marcou a primeira metade do século XX e plenamente actual) publicou em 1941, intitulado “Mirabeau ou o Político”. É que já nesse tempo a classe política estava longe de gozar de boa fama. Mas, ao contrário de outros, cujas diatribes contra os políticos revestiam, muitas vezes, formas caricatas, em Ortega y Gasset encontramos análise, fria e profunda.

Há, segundo o filósofo, dois grupos antagónicos de homens, “os ocupados e os preocupados”, sendo ocupados os políticos e preocupados os intelectuais, os primeiros homens de acção (não estando na sua génese pensar muito antes de agir), os segundos homens de reflexão, normalmente pouco pragmáticos.

Mas mais do que opor o político ao intelectual, Ortega distingue entre o pequeno e o grande político, não se atrevendo a “desintelectualizar” o grande político, afirmando mesmo: “se nos seus cimentos orgânicos e no seu mecanismo psicológico o político é a fórmula inversa do homem destinado à intelecção, não será grande político se não possuir uma política de alto mar e de larga travessia”, pelo que, continua o filósofo, “é ilusório crer que o político pode sê-lo sem ser, ao mesmo tempo, e em medida não escassa, intelectual”. A grande cultura é, pois, necessária ao grande político – é ela que o define, como a sua falta caracteriza a pequenez política.

Lembro, e com isto termino, o que, na linha de Ortega, disse Enoch Powell, grande parlamentar e homem de cultura: a regra prática para qualquer político sério é “ler, ler e ler””. Não sei se isso bastou para estar à altura dos desafios que me propus, mas que “li, li e li”, lá isso li e continuo a ler. Foi também por isso que nasceram, há 14 anos, estas Correntes, que vão continuar, cada vez mais fortes, estou certo disso.

Obrigado e boa estadia para todos

Póvoa de Varzim, 21 de Fevereiro de 2013

O Presidente da Câmara

José Macedo Vieira