Miguel Leite, o moderador, começa a falar:

 – Os governos… quaisquer governos…

– Começa mal… – ironiza o homenageado, António Vitorino D’Almeida.

O cenário é a sessão da primeira noite no Correntes D’Escritas (Terça-feira, dia 23), este encontro de livros, leitores e amigos próximos, categorias em que o carismático maestro está bem à vontade.

Deambulámos pela sua vida e pela sua arte, com a passagem pela Áustria em vezes diversas (como estudante, como músico, como Adido Cultural, esta será sempre uma das muitas Pátrias deste homem). Ouvimos e vimos sobre a questão da portugalidade e de um Portugal no início da década de 60, «em que ninguém sabia que existíamos e quem sabia era para criticar», graças às opções políticas vigentes.

Entre o piano a que se senta como quem em sente em casa e um humor epicurista que permite falar sobre Música tantas vezes vilipendiada como “Erudita” da forma mais coloquial e afectiva que possam imaginar, lá fomos alternando com alguns vídeos, fotografias, memórias.

Um pequeno parêntesis, pessoal e honesto: quando percebi o modelo da sessão, não pude deixar de sorrir, com agrado. Há cerca de um ano, que tenho organizado alguns pequenos cursos sobre aspectos relacionados com a Música (Literatura, Humor, Cinema, etc, etc) exactamente com o mesmo formato, tirando partido do caprichoso mas “mui útil” Power Point. É assim, as máquinas existem para potenciar a Comunicação e a Informática não tem de ser um empecilho de gelo.

Regressemos ao palco. Vitorino D’ Almeida conta sobre o senhor de oitenta a tal anos que tinha o café em frente ao quarto que alugou por terras vienenses, local que lhe permitia praticar o piano, requisito imprescindível para quem militava nos Estudos (que já deixavam adivinhar algo de extraordinário para as pautas e teclados portugueses). Esse mesmo senhor que veio a Portugal e, só então, com a provecta idade já referida, experimentou uma epifania: ver, pela primeira vez, o Mar. Enquanto falam, recordo a frase emblemática do centenário Vergílio Ferreira, «da minha Língua vê-se o mar». E o mar é feito de correntes…

A dada altura, o Maestro é confrontado com uma memória travessa, uma viagem de comboio cujo término não coincidiu exactamente com o bilhete. E outras mais antigas, com alunos, sem bilhete pago («eles não tinham dinheiro…», deixa escapar o autor de Coca-Cola Killer). Se Fernando Pessoa demonstrou um banqueiro anarquista, porque não pode o epicurismo presentear-nos com um maestro libertário. Recordo o início da conversa, em palco e o, cada vez mais claro, comentário de António Vitorino D’Almeida:

– Os governos… quaisquer governos…

– Começa mal…

É por estas e por outras que tantas vezes sorrimos, ao longo do Correntes D’ Escritas…