Em parceria com a Universidade do Minho, “Mulheres, artes e ditadura” foi o tema tratado pelos autores que abordaram questões como o poder das palavras, a desmontagem do óbvio e o tratamento dos tabus ao longo dos tempos.

Ana Cristina Silva começou por fazer alusão ao 25 de Abril que trouxe “cor e alegria a um Portugal cinzento onde as sombras habitavam por todo o lado”, e à atmosfera de medo da sociedade da época: “o horror da tortura, a humilhação, a fome que se pendurava com todo o seu peso na boca de tantos camponeses e operários, a humilhação dos meninos que iam à escola descalços”, salientando a destruição psicológica de que as pessoas eram alvo.

A autora falou da sua obra As Longas Noites de Caxias, e revelou que um dos objetivos do livro foi “fazer uma homenagem aos presos políticos que lutaram contra o fascismo e que ao longo destes 45 anos de democracia foram relativamente esquecidos”.

Para Ana Cristina Silva, “a literatura e todas as formas de arte são um instrumento fundamental da memória coletiva. A literatura tem o poder de usar as palavras para fazer latejar as emoções através da narrativa”.

Luísa Costa Gomes partilhou com o público algumas das suas perplexidades sobre o mundo atual e referiu-se também ao poder das palavras, a propósito do qual tem as maiores dúvidas.

A escritora fez um pequeno historial do papel do intelectual – escritor, artista – que ao longo dos últimos 50 anos veio a cristalizar um novo paradigma: “o Estado veio reduzindo o seu papel de intervenção cultural, foi desinvestindo e os media por definição hostilizam todo o pensamento e toda a investigação pessoal é independente”. A este propósito, transmitiu que “ao longo dos últimos 40 anos, o artista viu-se cada vez mais confinado ao estrito limite da sua casa, da sua vida privada, da sua obra pela qual vai tentando lutar para não ser extinta antes sequer de existir”.

Sobre o papel das mulheres nas artes contra a ditadura, Luísa Costa Gomes abordou a questão do óbvio: “as coisas óbvias são as que nos mantêm dentro da nossa bolha, dos nossos princípios, da nossa incapacidade de diálogo. Muitas das nossas resistências e lutas deveriam ir nesse sentido de refundar aquilo que é óbvio, ou seja, recomeçar uma luta que já devia estar terminada”.

Nesta procura de um novo modelo para a nossa ação de cidadania que é a escrita, Luísa Costa Gomes incita a uma mudança de atitude que cada um deve tomar para criar “esse espírito de resistência aos avanços da direita”.

Na sua opinião, “o poder das palavras não tem tanto a ver com as palavras que se dizem porque continuamos a dizê-las e a achar que têm poder e fazem diferença. O problema é que de facto não fazem, ou seja, não temos canais através dos quais possam levar as nossas palavras e fazer um trabalho pedagógico. Sou pessimista em relação à pedagogia. Esta depende do recetor”.

Terminou referindo-se à sua perplexidade sobre esta nova configuração social e cultural que assola a Europa e o mundo e contra a qual pensa que não temos ainda os instrumentos críticos e as estratégias de resistência que devíamos ter: “estamos ainda muito deslumbrados pelo que fez a nossa geração e somos incapazes de ver que as novas gerações já não se revêm em nada daquilo. Temos que ser capazes de sair da nossa bolha e tentar compreender o que se passa”.

O escritor cabo-verdiano Mário Lúcio chamou a atenção para uma questão, a seu ver muito importante, de precisão em relação à definição que deveria ser «países com língua portuguesa» e não «países de língua portuguesa», considerando que esta designação “continua a não deixar que criemos um espaço de igualdade maior”.

Mário Lúcio transmitiu que “com o tempo, os países com língua portuguesa vão enriquecendo a língua portuguesa. O português que falamos e escrevemos em Cabo Verde ou que leio na literatura angolana é um apoderamento da língua. Não pensamos em português, não sonhamos em português, não cantamos em português, não choramos em português, mas escrevemos em português. O nosso primeiro contacto com a língua portuguesa começa aos 6/7 anos com a escola”.

O escritor falou do seu livro O Diabo foi Meu Padeiro, em que, 45 anos depois do fecho do Campo de Concentração do Tarrafal, conta toda a sua história. Ao relatar a história desta prisão terrível e de quem a foi dirigindo ao longo dos anos, Mário Lúcio quis homenagear simultaneamente os que ali perderam a vida e os que sobreviveram ao horror e ainda os vários modos de falar uma língua que foi, tantas vezes, a que os tramou e a que os viria a salvar.

Terminou, constatando: “palavras novas para um mundo novo são precisas”.

Rui Zink, que se assumiu como já fazendo “parte da mobília”, ou não fosse presença assídua do Correntes d’Escritas, começou por notar que em relação à ditadura, “à medida que vamos avançando no futuro, vamos tendo novos instrumentos para ver o passado e percebemos, hoje, que comportamentos que achávamos normais no passado não eram assim tão normais”.

Fazendo alusão à nossa atualidade política e social, chamou a atenção para o facto de que “se não tivermos consciência de que estamos a fazer uma coisa errada, não estamos a fazer uma coisa errada. A única coisa que precisamos é testemunhas a nosso favor”.

Para o escritor, “a ditadura não terminou, é um processo. Estamos em construção”, acrescentando que “a ditadura é como um zumbido, chateia”, acrescentando que “o fascismo intimida-nos, encolhe-nos o pensamento. A boa ditadura é aquela que bate pouco. O sonho de qualquer ditador é não bater, mas antes instalar o polícia dentro de nós para não ter que sujar as mãos. A ditadura é um zumbido que nos apoquece, pisa a pessoa e faz de nós zombies”.

Alejandra Zina, que se estreia no Correntes d’Escritas, contou uma história inquietante da sua infância para abordar o tema da ditadura. “De há uns anos a esta parte, a literatura argentina vem explorando uma perceção que tem muito a ver com a forma profunda e poética que temos da infância. O ambiente opressivo aparece nos detalhes”.

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