“A meu favor tenho a poesia”, dizia o tema, mas este “estar a favor” não é evidente e não foi também evidente para os autores presentes na mesa. Desde logo, o moderador, Vergílio Alberto Vieira, acrescentou mais uma questão: tem, ou não, o poeta a ver com a poesia, tem, ou não, o poeta a poesia a seu favor?

Amadeu Baptista, procurou, com “Bosque Cintilante”, da sua autoria, mostrar essa impossibilidade em destrinçar o poeta da poesia e da vida – uma trindade que só não será divina porque a poesia se imiscui em todos os aspectos da vida, se suja e redime no concreto da existência humana. E é dessa crua realidade existencial que se enche o “Bosque Cintilante” de Amadeu Baptista, onde o poeta procura a salvação pela poesia e na poesia.

Uberto Stabile remeteu também para a inexistente fronteira da poesia e da vida, lembrando que: “há precisamente dez anos, neste dia 14 de Fevereiro, estava eu a enterrar o meu pai, que nunca entendeu o meu gosto pela poesia e que teria preferido se eu tivesse sido médico ou advogado”. Mas, por fim, é já reconciliado com a escolha do filho e orgulhoso do que este tinha conseguido alcançar, que o pai de Stabile parte e ele recorda, então, que, na vida, sempre teve a seu favor a poesia, porque sobre ela construiu a essência da sua própria existência. Só que, como afirmou o autor, “a poesia é fundamentalmente perversa; ela é, ao mesmo tempo, fé e dúvida”, por isso, um dos textos da sua autoria, que partilhou com o público, tinha como título “Maldita Poesia”. Uberto Stabile falou da poesia que alimenta e se alimenta, da poesia que é transubstanciação.

Também para José Emílio-Nelson a poesia quase assume corpo e existência própria, ao ponto de se atrever a questioná-la directamente em “Interrogações a um Versículo”, texto onde tenta analisar o que subtrai, afinal, a poesia de nós (os poetas)”. E, apesar de achar que, contra ele tem a poesia, revela que permanece nesse “esforço utópico de a ter a meu favor”. É que a poesia, para alguns, não dispensa que o poeta, a horas certas, contemple Babilónia, como afirmou Vergílio Alberto Vieira numa das suas intervenções, enquanto moderador.

Vicente Martín Martín optou por, como afirmou, mostrar que tinha uma posição “mais popular sobre o assunto, porque, como uma mulher” – ironizou –  dá-nos, por vezes, mais dissabores que prazer”. E afinal, acrescentou ainda, “sou eu que me sirvo da poesia e a prova disso é que estou aqui, a desfrutar de um evento como este”. Mas, ironias à parte, para Vicente Martín Martín, a existência da poesia assume uma quase necessidade biológica para a procura de uma identidade. “O escritor é um recriador do mundo e escrever serviu-me para conhecer um pouco mais sobre mim mesmo e para reconhecer o meu lugar no mundo”, concluiu. A poesia a seu favor, pois.

Vergílio Alberto Vieira escolheu Ondjaki para encerrar esta segunda mesa do Correntes d´Escritas e este conquistou a plateia com o seu excelente sentido de humor e uma imitação perfeita do seu congénere angolano, Manuel Rui, de quem citou vários excertos de “O Manequim e o Piano”.

Ondjaki construiu a sua intervenção em torno da língua falada e da sua presença na poesia, desse exercício de intimidade entre a oralidade e a escrita; da riqueza do português, falado e sentido de formas tão diversas e tão ricas na extensa realidade lusófona. Ondjaki lembrou que “a poesia está a favor das línguas de falar e escrever” e que “o poeta tem a seu favor todas as formas de reinvenção e o instinto trabalhado de um animal de busca. Ondjaki falou da poesia que se cola à pele, que é língua e sentir, sem dúvida a favor dos poetas, sem dúvida a favor dos que a lêem. E, apesar de ter começado com uma citação de Mia Couto, é difícil não recorrer a ela, em jeito de conclusão, porque ainda: “falta-nos descobrir o caminho humano para o futuro”.