Ana Luísa Amaral referiu-se ao medo “de não conseguir escrever” e não “medo da poesia, propriamente dita”. A escritora apavora-se com a possibilidade de “a palavra não fazer a sua visitação”.

Num texto construído propositadamente para a Mesa das Correntes d’Escritas, como Ana Luísa Amaral já habituou os frequentadores do encontro literário há vários anos, a autora deslumbrou com as suas palavras alinhadas poeticamente, como que a desafiar o medo da falta delas.

Ana Luísa admitiu também ter medo de que “quem a lê não goste” daquilo que escreve. O que não foi o caso nesta plateia, tendo até havido júbilo de um dos presentes, que gritou “boa!”, seguido de aplausos entusiastas, quando a autora afirmava – “quem tem medo da poesia são os das ditaduras, que se impuseram primeiro pela força dos músculos, depois pelo que herdaram dos mais velhos, a astúcia, o engano e a impiedade (…)”

Isabel Rio Novo começou por explicar que, sendo nascida e criada no Porto, cedo foi habituada a mascarar o medo, desde logo na linguagem. No recreio, em vez de dizer “tenho medo”, dizíamos “tenho respeito”, explicou a autora da biografia de Agustina Bessa Luís.

Agora, nesta Mesa com o título “Tenho medo da poesia”, entre poetas, Isabel Rio Novo afirmou “tenho respeito”!

“Respeito traduz bem a atitude da mulher que escreve romances, mas nunca poemas, que cresceu a ouvir poesia e gosta de ouvir poesia em voz alta e que, quando resolveu escrever uma tese, escolheu como tema os textos de teorização poética do Romantismo. Acho que partilho com os autores românticos, que então estudei, a noção de que a poesia é uma forma de Literatura superior, quase divina, a que nem todos podem aspirar!”, afirmou a escritora portuense.

Sim, ela tem medo da poesia, mas nem por isso deixa de procurar “um certo arrepio” que essa poesia lhe provoca. Foi o que fez ao fazer poesia através das histórias que lhe inspiraram os quadros de Gustave Caillebotte (1848-1894), um pintor francês de quem se abeirou “nos últimos anos, a escrever devagarinho um romance”, em que fez dele personagem.

Os escritores românticos diziam que “todos os artistas” eram poetas, assim, disse Isabel Rio Novo, “também eu posso fazer poesia dos meus livros”. Com “respeito” sempre…

Ivo Machado aludiu ao medo da poesia com o texto que preparou para os privilegiados presentes na Mesa 4 das Correntes d’Escritas, com o título “Sinto pesadelos mesmo acordado de perder a minha voz”.

Os medos vão sobressaindo em vários aspetos da vida e em vários momentos, como foi referindo o autor do livro “Oratória”: “tenho medo de perder a voz, porque se sou poeta necessito desta voz, (…) não há memória de poetas mudos”; (…) “tenho medo de um dia acordar e olhar no teu rosto e não o reconhecer”.

O escritor adiantou ainda que “todos temos medo”, pois o medo é próprio da nossa condição humana, mas se não existisse medo, o homem não seria o mesmo homem e sem homem não existia a poesia…

Ivo Machado referiu-se depois ao medo da poesia interventiva por parte dos regimes totalitários. Ao longo da História há muitas histórias do poder ou do medo da poesia…

Mas afinal, frisou Ivo Machado, não há que ter medo da poesia, porque ela “é o húmus de que somos feitos”.

A cantora guineense Karina Gomes afirmou que quando pensa na palavra “medo”, pensa de imediato na palavra “coragem”, que “não é a ausência de medo, mas é enfrentar e prosseguir mesmo tendo medo, é agir mesmo sabendo que haverá represálias, continuar a luta”.

A cantora escutou antes o que disseram os autores na Mesa 3 “Era uma vez a liberdade” e sublinhou que acredita que “a liberdade está intimamente ligada ao tema da poesia que causa medo”.

Karina referiu-se à importância da poesia cantada na causa da liberdade e luta pela independência na Guiné-Bissau. Foram os poetas e a poesia os grandes mobilizadores da causa da liberdade, arrebatando centenas de jovens para essa luta. Poesia cantada quer em português, quer em crioulo.

Karina Gomes deixou o apelo a que seja visitado “o que se faz até hoje na Guiné-Bissau na área da intervenção social e política através da música”.

Miguel Araújo, outro cantor e compositor, afirmou ser a primeira vez que estava presente num certame literário, por isso, sim, “isto mete medo logo à partida, ser convocado para uma mesa de poetas…”

O autor referiu-se à imagem que tem dos poetas: “o poeta vive num moinho abandonado, ao pé de um ribeiro, a escrever em papel ou numa máquina de escrever”…

Isto é muito diferente da sua vida “corriqueira”: “vivo num apartamento e escrevo as minhas coisas num telemóvel, enquanto deixo os meus filhos nas aulas de natação”.

Miguel Araújo, considerou que o poema e a letra de uma canção são “diferentes tecnicamente falando, já que enquanto o poema vale por si, a letra precisa da melodia para se revelar. A Adriana Calcanhoto diz precisamente isso”.

Para o cantor, nascido na Maia, o processo criativo começa com a música, é a melodia que lhe surge primeiro e só quando a completa é que passa a esse processo de encontrar a letra – “uma descida aos infernos, como lhe chama Chico Buarque e com o qual eu concordo”.

A procura das palavras é o mais difícil para este músico, que tem muita dificuldade em fazer isso para músicas que sejam compostas por outras pessoas.

Sim, também Miguel Araújo tem medo da poesia. Quando busca as palavras, fica “num estado aflitivo”. Mas quando “a palavra surge” para determinada música “é inequívoca”. Tem que ser aquela palavra para aquela música e nenhuma outra fica bem.

Por fim, Vasco Gato, falou daquele medo do poeta que não sabe “ir até ao fim” e da “febre da separação” – “isto é um autor, isto é uma obra, isto é a pintura, é favor não ultrapassar o risco no chão, isto é a música, é favor permanecer sentado, isto sou seu, isto sou eu!”

A poesia entra neste processo do “medo” como uma “espécie de marcha-atrás neste processo – o poema nasce do fechar os olhos para ver dentro do negro nevoeiro, nasce da dissolução da realidade…”

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