Ignácio de Loyola Brandão foi contando episódios da sua vida aos quais ficaram coladas uma espécie de soundtracks e que, de forma hipnotizante, foram interpretados pela voz de Rita Gullo, filha do autor, e pela guitarra de Edson Alves.

O espetáculo “Solidão no fundo da agulha” tem levado o escritor aos palcos do Brasil. No repertório estão músicas como Amado Mio (Doris Fisher/ Allan Roberts) da banda sonora do filme “Gilda”, que era proibido para crianças e que estimulou a criatividade do menino Ignácio, então com 12 anos de idade, e que se fez presente muito anos mais tarde para ajudar o jovem jornalista a não voltar para a terra natal fracassado. Temas marcantes como Valsinha (Chico Buarque e Vinicius de Moraes), Que reste-t-il de nos amours? (Charles Trenet) e muitos outros ganham novo contexto ao vivo e permeados por lembranças.

Mas, a primeira canção a ser interpretada foi portuguesa, talvez em jeito de agradecimento pelo convite – que, de resto, Ignácio fez questão de repetir diversas vezes ao longo da apresentação. O narrador, como ele próprio se intitula, viu o filme francês “Os amantes do Tejo” – recomendado por uma das suas professoras – e, no final, parou numa gelataria em Araracuara, sua cidade natal. Enquanto saboreava o gelado tocava A canção do Mar, de Amália Rodrigues, música que faz parte do filme. Mesmo depois de sair de Araracuara, Ignácio sempre voltava à gelataria até ela encerrar há alguns anos atrás. O dono, com mais de 90 anos, guardou uma das taças de metal que serviu gelados ao longo de décadas e ofereceu-a ao escritor, que fez a gentileza de a trazer para a Póvoa de Varzim e mostrar ao público do Correntes.

Mas, antes de Rita Gullo e Edson Alves subirem ao palco do Cine-Teatro Garrett, Ignácio de Loyola Brandão contou outras tantas histórias marcantes da sua vida. O escritor confessou-se “honrado, emocionado, trémulo e inquieto com o convite para realizar a Conferência de Abertura do Correntes d’Escritas”.

Uma das pessoas mais lembradas por Ignácio foi a sua professora do ensino primário, Lurdes. “No 3º ano, a professora mandou-nos fazer um desocultamento. Com nove anos de idade, nós nunca tínhamos ouvido essa palavra. E ela explicou-nos: quero que façam uma composição sobre os vossos bairros mas não sobre as coisas banais, do quotidiano. Quero os vossos problemas, quero que falem sobre o que vos incomoda, dos vossos medos. Desocultem!” Estávamos em 1945 e aí aprendi a minha primeira lição como escritor.

E, agora, com o Presidente Temer e aos meus 81 anos, percebi que pertenço à última geração de uma educação organizada. Ser professor no Brasil é uma profissão em processo de degradação. Este ano, o Presidente Temer reduziu em 180 milhões de euros as verbas para a educação e saúde. Isto em detrimento da manutenção de campanhas políticas dos piores deputados da história do Brasil.

Regressando a Lurdes, o escritor contou que uma das suas composições diziam respeito às segundas-feiras brancas, dias assim apelidados por serem dedicados à lavagem da roupa branca. “Os rapazes sabiam que no meio das cordas estavam a secar as toalhinhas higiénicas. Era um momento de encantamento para nós. Parávamos a pensar que determinada toalhinha era da Clarisse, outra da Eulália. E esse foi o tema da minha redação sobre desocultamento. A Lurdes mandou-me esperar no fim da aula. E disse: tu ainda não sabes, mas isto é erótico. Vou dar-te 100% de nota mas não vou ler a redação para a classe. No futuro tens de ter cuidado. Faz o que entenderes apesar de tudo. Vão dizer-te que não podes, que não deves. Mas faz. Nunca tenhas medo. Escreve o que te vem à cabeça. Arrisca. Só não falha quem não faz. Isto passou-se nos anos 40. A Lurdes era uma mulher que já sabia das coisas”.

Ignácio lembrou que a sua raiva contra a ditadura militar fê-lo escrever Zero. “Escrevam. Vocês serão a memória que alguns pretendem sufocar”. E, em 2018, “arrisco outra vez. Em maio será lançado no Brasil mais um livro meu. O mundo que dividia o capitalismo do comunismo já não existe. Hipócritas, radicais, fanáticos, religiosos, esquerda, direita, extrema esquerda, extrema direita, fake news avançam por toda a parte. A cultura, além de perder verbas, é atacada. Cada grupo quer impor à força o seu comportamento, os seus ideais. Há professores que censuram livros didáticos e fornecem a editoras palavras e temas proibidos. Não se esqueça que o ódio e a censura são baseados no medo. Vivemos no mundo de Trump, de Putin, de Maduro. Caiu o Muro de Berlim mas ergueram-se novos muros. Serenamente vamos perdendo a razão. Neste momento arrisco-me de novo. Ousei. Vou mostrar a minha visão do Brasil e também do mundo”. E sublinha: existem duas coisas que são infinitas: o Universo e a estupidez humana.

Terminamos com o final de uma das muitas histórias contadas por Ignácio: o professor de matemática, numa prova oral, deu-lhe nota 10 (nota máxima) quando o escritor apenas tinha preenchido o quadro de ardósia da sala com números, chavetas e sinais de multiplicar e dividir, tentando impressionar uma grupo de meninas que estava na sala. Em privado, Ignácio perguntou se tinha de voltar para o ano porque sabia que tinha reprovado e que o 10 não era verdadeiro. O professor respondeu: “vai embora Ignácio, porque o teu mundo é o da imaginação”.