No decurso de 20 anos (1980 a 2000), a população urbana em Portugal registou um aumento significativo: passou de 2, 6 para 6,3 milhões, ou seja de 29% para 63% do total da população.
Estes números traduzem a desertificação do Portugal profundo, do mundo rural – que, ao invés das cidades, registou uma média anual de crescimento de – 3,3%, tal como a percentagem de terra arável diminuiu de 26,5% em 1980 para 20,5% em 2000. Em contrapartida, o número de carros por cada 1000 habitantes não parou de aumentar: de 248 em 1990 para 348 em 2000 (número que nos coloca a par da Grécia).
A renovação de gerações em Portugal é também preocupante: éramos 9,8 milhões em 1980 e 10 milhões em 2000; seremos 9,9 milhões em 2015 – e, destes, 68% viverão em aglomerados urbanos com mais de 1 milhão de habitantes.
Isto significa que se vão acentuar os problemas de ordenamento do território, reflectindo-se de forma crescentemente negativa na vida das cidades, que já hoje evidenciam sinais de muitas patologias organizativas nos planos espacial, económico, social e cultural.
É lugar comum dizer-se que as cidades estão desumanizadas: que o seu ritmo de crescimento, outrora equilibrado, se mostra agora incontrolado; que a má qualidade do ar que se respira, o penoso sistema de transportes e de desiguais condições de habitação fazem das cidades lugares cada vez mais inóspitos e agressivos, onde o prazer da vida se perdeu, diluído em insuportáveis coros de buzinas, na aflitiva ausência de espaços verdes e no crescente número de cidadãos excluídos.
As cidades (o modelo de cidade que herdámos) estão a envelhecer e a engordar, morrendo por dentro, nos seus centros. De aglomerados de pessoas transformam-se, progressivamente, em aglomerados de serviços onde diariamente se deslocam milhares de pessoas expulsas para as periferias, transformadas em autênticos dormitórios.
As cidades viram desaparecer os cafés, pontos de convívio onde, à volta de uma bica, as pessoas conversavam despreocupadamente e construíam laços de proximidade e de pertença – e, no seu lugar, viram surgir dependências bancárias onde as mesmas pessoas agora se deslocam solitárias, em busca de um empréstimo que as vai acompanhar por toda a vida.
As cidades viram lentamente desaparecer espaços verdes, sacrificados em assembleias de condomínio face à necessidade de, no seu lugar, se plantarem lugares de estacionamento.
Estas cidades – à medida que vão espreguiçando anarquicamente para os arrabaldes onde acolhem os que deixam o mundo rural, seduzidos não se sabe por quê – vão morrendo no seu centro, azafamado durante o dia pelo bulício dos escritórios e invadido de tristeza e de morte durante a noite.
Nestas cidades, os próprios espaços de diversão nocturna estão compartimentados em zonas, prolongando em noites de fim de semana os engarrafamentos e as aglomerações de pessoas em espaços exíguos.
Do “come-em-pé” dos dias de trabalho passam os cidadãos, sobretudo os mais jovens, aos fins de semana, para o “bebe – em – pé – de – copo – na –mão” em locais de suposta distinção social, vivendo a noite em ambientes fechados, suportando doses excessivas de decibéis e luzes psicadélicas, enquanto cá fora o silêncio só é perturbado pelo estrondo de um choque de viaturas, pela gritaria de uma rixa, pelo tocar de uma sirene de ambulância ou pelo silvo aflito de um alarme.
As cidades estão, de facto, no limiar da mudança, atingido que foi o limite da sua sustentabilidade.
Se os subúrbios não passam de dormitórios de grande e desordenada concentração – de onde, todos os dias, milhares de residentes se deslocam, suportando o calvário de horas em engarrafamentos que mais parecem serpentes adormecidas… e deixando atrás de si o vazio diurno, onde crianças desenraizadas e ociosas aprendem marginalidades de toda a espécie…, também o miolo urbano (o centro tradicional identificador da cidade) é, desde há anos, um crescente deserto.
Isto acontece nas áreas do Grande Porto e da Grande Lisboa, como em Braga, ou em Coimbra – até, de algum modo, na Póvoa de Varzim.
Há, em Portugal, sobretudo nas áreas mais centrais das grandes cidades, meio milhão de fogos devolutos – como há também, nas periferias, milhares e milhares de novas habitações num mercado já saturado, fruto da actividade de uma indústria que, dizendo-se estratégica para o desenvolvimento económico, não se dá conta de que o seu futuro (aqui, como na Europa) está na reconstrução e na reabilitação do parque habitacional.
A degradação urbanística e social a que chegaram os centros urbanos obriga a repensar toda a problemática da gestão urbana.
E, concretamente, impõe que se quebre o círculo vicioso em que tudo isto se tem alimentado irracionalmente: a especulação (preços altos, tabelados para serviços e comércio) e as baixas rendas antigas (que não permitem obras) são o cozinhado de que se alimentam as imobiliárias (que deixam as casas esvaziarem-se, acelerando se necessário a sua degradação até obter uma licença de demolição – para construir novos prédios e obter maiores lucros) – tudo isto perante a distracção, ou concluio, dos poderes, designadamente, do poder local onde, é bom reconhecê-lo, há muita falta de cultura urbana.
Políticas de revitalização dos centros urbanos – designadamente, pela via do estímulo ao arrendamento a casais jovens – são hoje fundamentais para interromper o caminho da morte das nossas cidades, muitas delas já tão descaracterizadas que não têm centro.
E, não tendo centro, não têm identidade. Porque, para entender uma cidade, é necessário saber onde está o seu centro – eixo condutor do seu desenho. Um centro que não é apenas um ponto de convergência de itinerários, mas um verdadeiro lugar, átrio da memória da cidade.
As cidades modernas estão cheias de lugares impessoais, espaços que impossibilitam qualquer forma de identificação, porque apagam os sinais contextualizadores.
Uma cidade sem centro não é uma cidade, é apenas um corredor de passagem.
É, por isso, crescentemente oportuno que, neste país (onde os centros urbanos apodrecem, convertendo-se em terreno favorável à toxicodependência, à marginalidade, à insegurança, com a inerente decadência das actividades económicas tradicionais) se reflicta seriamente sobre a sua gestão.
No fundo trata-se de encontrar as novas vocações das cidades enquanto espaço de excelência da coabitação do ser humano e a mais genial das suas criações.
É que, se a cidade perfeita e o seu governo ideal, de que falava Thomas More, são inatingíveis, não tenho dúvidas de que os gestores urbanos têm capacidade para superar os problemas reais com que diariamente são confrontados nas suas cidades.
E se a utopia é como o horizonte – que, quanto mais andamos, mais se afasta – é precisamente por isso que eu, e todos nós, gostamos dela: porque nos permite caminhar.
Que este 4º FORUM Internacional de Urbanismo seja um pequeno passo nesse sentido.
Póvoa de Varzim, 18 de Outubro de 2002
José Macedo Vieira