Antes de dar início às intervenções, o moderador leu o poema “Ingrina” de Sophia de Mello Breyner Andresen de onde foi retirado o verso.

O Ministro da Cultura de Cabo Verde foi o primeiro a intervir e para assinalar o Dia Internacional da Língua Materna (21 de fevereiro) fez questão de saudar a plateia em crioulo. Partiu, depois para uma análise da sociedade em que vivemos, de “transparência da invisibilidade”, sem afetos: “não há como começar o mundo com afetos que não mudam o nosso mundo”.

Para Abraão Vicente, “há espaços sagrados que deviam ser guardados da banalidade, da volatilidade, das opiniões de circunstâncias, dos programas eleitorais e de todos os afetos que não permanecem: nossas ruas, nossas gentes, nossas cicatrizes, nossas mães, nossas crianças sagradas”.

O poeta terminou referindo-se ao “amor que dura para sempre, o afeto da pátria, do chão que fica, regressa aos tempos das aldeias e das luzes apagadas às seis da tarde. Hoje, o céu das estrelas, a infância, o sonho, aí sim o tempo em que nesta manhã eu recomeço o mundo”.

E de Cabo Verde passamos para a Galiza, na voz de Cesáreo Sánchez Iglesias que se debruçou sobre as memórias: “segundo cada idade minha, a luz tem distinta densidade. Fui aprendendo e desaprendendo daquilo que me lembro e fiquei sendo, tão só, o eco das minhas lembranças que são pegadas com as quais construo o presente”.

Para o Presidente da Associação de Escritoras e Escritores em Língua galega “em toda a parte as cidades mudam com estéticas uniformadoras, mas permanecem os sons, as cores que determinam as variações da luz, permanecem as poéticas da luz”.

Revelou que ao escrever a sua alocação “estou a visitar na memória lugares desta terra que é também minha, que faz parte da minha biografia, parte determinante da minha memória emocional. Ao fazer de novo esta viagem, estou a retornar por caminhos que andei e recomeço uma escrita. Construo cada momento deste presente no passado. Recomeçamos porque nascemos nus na memória dos sentidos ou porque a memória é um ser vivo, a memória do corpo, um ser independente de nós mesmos que alimentamos e nos alimenta. A lembrança está feita de realidade imaterial que algum dia existiu”.

E da Galiza chegamos a Portugal e no feminino com Cristina Carvalho que explanou as suas considerações sobre o verso: “Nesta manhã eu recomeço o mundo, com dificuldade, é certo, com alguma poética, posso dizer, posso imaginar que a manhã cresce imensuravelmente todos os dias e sempre sob o dedo acusador da enorme mão do criador, esse dedo que me aponta desde que a terra existe tudo o que faço de bem e de mal”.

A autora referiu que “nunca consegui coexistir sozinha. Posso morrer sozinha, mas não posso nascer sozinha. Portanto, nesta manhã eu recomeço o mundo, sim, eu e todos, velhos e novos, próximos e longínquos, interessados e desinteressados, pobres e ricos, recomeçamos o mundo todas as manhãs e quem não o fizer é porque ainda não existe”, acrescentando que “encontra-se tudo num novo recomeço, desde a luz inicial a todas as trevas, desde a paz à guerra”.

Acabar e começar foram os vocábulos que Joana Bértholo escolheu para dar início à sua intervenção em que referiu que sente que já foi tudo dito há séculos, há milénios, recorrendo ao filósofo Heraclito que “não só nos mostrou que o caminho é sempre o mesmo tanto para quem sobe como para quem desce”.

Na sua opinião, “vivemos condenados ou abençoados a que tudo seja uma primeira vez mesmo quando uma repetição. Dessa inevitabilidade podíamos até partir para o exercício supérfluo de dividir o mundo, já por si tão extensamente dividido, entre aqueles que o interpretam como uma sucessão de primeiras vezes e os outros para quem qualquer primeira vez é como que uma espécie de mal necessário ou um preço a pagar pelo prazer da revisitação”.

Joana Bértholo reconheceu que “é na literatura que encontro a casa da imaginação”, acrescentando que “a imaginação é, de tal forma, uma ferramenta poderosa e perturbadora que quase me é possível imaginar o dia em que a terra, numa manhã só dela, começa o mundo sem nós”.

O último interlocutor desta mesa foi Nuno Júdice que centrou a sua abordagem ao verso de Sophia de Mello Breyner na palavra “manhã” e na sua utilização na poesia portuguesa, recuando à poesia galaico-portuguesa: “nos Cancioneiros, há um género poético que são as albas (madrugada)”, constatando que “madrugada e manhã são conceitos um pouco diferentes em termos poéticos, ou seja, madrugada (tempo mais curto) é um verso e manhã (muitos momentos) uma estrofe”. O autor leu algumas Cantigas da Idade Média em que estes conceitos aparecem com frequência.

Terminou constatando que “hoje, a melhor maneira de recomeçar o mundo é com a poesia” e, nesse sentido, leu um poema da sua autoria intitulado “Aula de Poesia”, “lembrando também os muitos anos em que eu recomeçava o meu mundo de manhã a dar aulas a alunos que estavam muito ensonados”.

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