Os protagonistas da noite foram Afonso Cruz, Ana Cássia Rebelo, Bruno Vieira Amaral, João de Melo, Pedro Teixeira Neves e Rui Zink, moderados por Henrique Cayatte.

Afonso Cruz foi o primeiro a tomar da palavra e falou sobre as “ruínas” e as “intermitências da vida”, num recuo às origens da escrita, mas sempre fazendo alusão à atualidade.

“Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente, para gravar contabilidade. E essa é uma coisa que não perdoo à Humanidade: ter começado pela contabilidade em vez de ter começado pela poesia”.

O escritor continuou referindo que “a escrita surgiu para passarmos faturas, e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que, ironicamente, são a grande matéria-prima das ruínas, já que outras materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras. As faturas precederam a poesia. Também se gravaram códigos e leis. Moisés gravou em pedra os Mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita pois foram partidas quase de imediato. Deste tipo de escrita nasce o castigo, o pecado, o medo, a censura. A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta tem um poder imenso”.

Afonso Cruz afirmou que “mais do que somente a escrita, é a cultura em ruínas que faz surgir intermitências na vida”.

Ana Cássia Rebelo, que no Correntes d’Escritas lançou o seu primeiro livro Ana de Amesterdam, construiu um texto sobre a sua estreante presença no Encontro, falando também da sua experiência “mais como leitora do que como escritora”.

Para se preparar para o tema da mesa contou que “em mim nasceu o desejo de construir um texto que fosso inspirado e inspirador. A frase é poética mas pareceu-me pomposa, palavrosa, muito afetada. Quanto mais pensava no tema mais sentia que o meu espírito se ensarilhava. A cada instante me sentia oca, cansada, desmerecedora do convite que me fora feito. Há coisa de uma semana, esse desespero ganhou uma dimensão patética e trágica. Por essa altura, já não almejava escrever um texto inspirador e inspirado. Desejava, apenas, escrever um texto que fosse cordato, orientado para uma reflexão ponderada do tema que nos era proposto”.

No seu processo de criação, conta Ana Cássia Rebelo que constatou que “não me sentia uma escritora e continuo a não me sentir uma escritora. Mas nesse instante percebi uma coisa: posso não me sentir uma escritora, mas sou uma boa leitora, uma leitora competente”. Continuou, partilhando: “a partir do momento em que me desembaracei do peso da autoria e vesti a pele de leitora, pareceu-me mais fácil escrever um texto”.

Ana Cassia Rebelo terminou revelando: “é como leitora que digo que a escrita que gosto de ler, a que me incendeia por dentro e deixa marcas profundas naquilo que sou, aquela que nunca me abandona é aquela em que, transpirando as tais intermitências da vida, eu percebo o trabalho do autor”.

Bruno Vieira Amaral fez uma apresentação ilustrada e do mote decidiu focar-se na palavra “ruínas”: “Os Românticos contentavam-se com as ruínas para que os homens nunca se esquecessem da futilidade essencial da vida e aceitassem, serenamente, a sua condição mortal. Esse reconhecimento de que nascemos para morrer, de que somos seres para a morte, nunca impediu o homem de negociar com o tempo”.

O escritor e crítico literário falou sobre a erosão do tempo e desgaste da humanidade: “não ruínas mais comoventes do que os rostos humanos”.

Bruno Vieira Amaral transmitiu que “quero acreditar que o nosso fascínio pelas ruínas não se explica apenas pelas lições existenciais e históricas que encerram ou pela sua fealdade bela, que não nos servem apenas de medida do tempo, e que contam mais do que a brevidade certa da existência. Haverá um núcleo secreto que nos atrai para as ruínas e nesse núcleo, eu acredito, que encontraremos as histórias. Percebe-se melhor a ideia se compararmos as ruínas a certos edifícios, cuja frieza e monumentalidade são desumanas, não só porque se projetam para um futuro que já não iremos testemunhar mas porque lhe faltam as histórias que os humanizem. Essas histórias que só as ruínas podem contar dizem-nos que é possível reconstruir o mundo através dos escombros. Depois das ruínas, um novo mundo”.

João de Melo propôs abordar o tema da mesa com uma comunicação intitulada “Autoelogio da loucura”.

O escritor açoreano referiu: “estive numa guerra que nunca existiu. Não me lembro de nela ter morrido de verdade. O meu papel consistiu em tentar salvar os vivos e ressuscitar os mortos. Se fui salvo e estou aqui devo-o apenas à catarse da literatura, a minha”.

Recorrendo-se de um outro episódio, transmitiu: “recusei liminarmente qualquer associação entre mentira e ficção. Para mim, a arte do romance não consistia em mentir mas sim numa espécie de fingimento do mundo que se pretendia imitar. A mentira não passa de uma ocultação propositada de uma estratégia distorcida, enviesada no modo como representa a realidade. Em contrapartida, a arte de fingir exige uma lucidez e uma clarividência. Tal como um louco varrido, o escritor assume a invisível acusação da lucidez”.

Concluiu: “a minha é uma loucura secreta e indizível. Ninguém a nomeia. Pouco ou nada conheço dela. Não a sinto, não a ouço. Não a vejo ao redor. Será talvez uma questão de fé muito pessoal. Pressinto-a à flor da pele através dos poros. Loucurazinha por mim segregada como se fosse a única morada. Não posso separar-me dela”.

Pedro Teixeira Neves partiu do termo “ruínas” e referiu-se também ao modo “como funciona um autor em processo de escrita”: “para mim, partir, no ato de escrita, equivale sempre a partir de ruínas, isto é, a partir de ideias soltas, divagações genéricas, recordações diversas, emoções várias, que depois, no momento de escrita, a si mesmas se vão unindo, somando-se pedra a pedra, gerando-se, no final um todo a que então e só então poderá vir a chamar-se texto”.

Para o escritor, “é sempre a partir de ruínas que nos vamos construindo dentro de nós, daquilo que em nós fica, permanece, perdura”.

Explicando a sua visão do processo de escrita, Pedro Teixeira Neves transmitiu que “a escrita é vida. Mas só o é uma vez transmitida, uma vez partilhada. Estar à escrita é à vida e estar à morte”.

Rui Zink começou por confessar que “agrada-me a ideia de poder entreter e incomodar”, em resposta ao rótulo que lhe tem sido atribuído de “divertido e provocador”.

Posto isto, disse que título da sua comunicação era “Sem luz entre ruínas”, explicando que “tem a ver com a ideia da manta e do conseguir rasgar a manta. Vivemos, num tempo, em que estamos sistematicamente ameaçados, quer a nível nacional, quer a nível mundial”.

Neste sentido, referiu-se a um discurso dominante de “argumento não argumento”.

Rui Zink considera que “a escrita também é uma ciência. É uma outra relação com a vida”, acrescentando que “o tipo de escritor que gosto de ser é aquele que resiste à manta e, com a caneta que lhe é dada vai fazendo furinhos na manta a ver se passa alguma luz. Os escritores de que eu gosto são escritores que iluminam. Tento ser um escritor que ilumina e gosto de ser um leitor que é iluminado. Da vida quotidiana, espero mais do que apenas iluminação, mas da leitura e da escritura, gosto sempre quando há uma busca de luz”.

A este propósito, referiu-se à “ética da escrita” e transmitiu que “é muito bom, enquanto escritores, sabermos que somos anões aos ombros de gigantes e não gigantes aos ombros de anões. Só que esse movimento tem que ser também um movimento de contestação. Tentar fazer alguma coisa de diferente”.

Recorrendo constantemente à imagem da caneta que devemos usar para fazer uns rasgõezinhos e deixar entrar a luz, Rui Zink terminou revelando que “gosto de ser um escritor que desilude. Existo enquanto artista e leitor para desiludir e, às vezes também, desapontar. Enquanto escritor, mil vezes desapontar porque apontar é feio”.