“A literatura é um pouco como as filas de trânsito, acontece às vezes por acidente e porque as pessoas abrandam para ver a tragédia”, disse Afonso Cruz. “Lemos coisas terríveis e temos prazer nisso”. Por isso, sobre o tema desta noite “A escrita é um investimento inesgotável no prazer”, Afonso Cruz considera não haver muita distinção entre dor e prazer: “gostamos de ler um bom livro, de ler a tragédia, de abrandar perante um acidente. É muito mais fácil chorar do que rir perante a beleza. Ninguém desata a rir quando faz amor, pelo contrário, fazemos expressões de dor”, exemplificou.

O autor ainda confessou que um dos seus maiores desejos é que os seus filhos gostem de ler. “Há algum tempo, um amigo disse-me que estava impressionado com o meu filho de quatro anos, que era muito erudito. Fiquei admirado e perguntei-lhe porquê. Disse-me que gostava muito de Tolstoi, respondeu-me. Será que o meu filho lê Tolstoi às escondidas? Até que me apercebi que o que o meu filho tinha dito é que gostava muito do Toy Story, tinha era dificuldade, e tem até hoje, em dizer os ‘erres’”.

Ana Luísa Amaral considera que o tema da Mesa “não é tão fácil assim de comentar. Se a escrita é um investimento de prazer, ainda por cima inesgotável, é-o, antes de mais, porque a escrita não vive sem a leitura e os dois estados estão ligados. Ao pensar neste tema, lembrei-me da frase algo arrogante de Carlos Drummond de Andrade: A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas, por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede”. Para a poetisa, parece-lhe ser “mais fácil falar da leitura como fonte inesgotável de prazer”.

Manuel Moya, o representante espanhol desta Mesa de Debate, contou que o primeiro livro que comprou na vida foi um regulamento de futebol e, depois, aos poucos, foi comprando cada vez mais livros e entusiasmando-se. Sobre a relação entre prazer e escrita, Manuel Moya descobriu-a quando miúdo, quando se apaixonou por uma rapariga e, para conquistá-la, lhe escrevia poemas. “Mas ela não gostava dos meus poemas”, confessou. “O prazer da literatura tem mais a ver com o processo do que com a meta”.

Rui Zink comentou: “isto é um milagre. Quando cá estamos sentimos mesmo carinho uns pelos outros, mesmo que no resto do ano nos detestemos. Este é um espaço maravilhoso e mágico”. O escritor lembrou a participação de Rubem Fonseca na Mesa de ontem e a “lição magistral que ele nos deu. Foi fantástico ver que ainda é um menino a jogar à bola. Brincar é a religião suprema, a forma mais séria de viver”. Zink disse ter sido comovente ter ouvido Rubem Fonseca, “um avançado”, Eduardo Lourenço, “um ponta de lança”, e Manuel Clemente “que joga a Bispo. Não conheço essa posição em futebol, mas em literatura vale tudo”. Sobre o prazer em escrever, Rui Zink afirmou ter “prazer em muitas coisas na vida, mas escrever não é uma delas. Escrever é trabalho. A vida é que me dá prazer”. Terminou a sua apresentação, relembrando um poema que lhe deu muito prazer, que “me assombra há muitos anos”, de Ana Luísa Amaral. Não o sei de cor, mas vou dizer o conteúdo, que também é forma”. Sob o olhar atento da poetisa, Rui Zink lá foi dizendo a tal forma: “Tive uma ideia genial para um poema. E entrou a minha filha a queixar-se que não conseguia dormir. E eu disse-lhe que estava a escrever, mas ela insistia e eu pensei: que se lixe o poema”. Ana Luísa ria, o público ria, fazendo prever que o poema seria muito diferente da forma dita por Rui Zink.

Mais uma vez, casa cheia. Júlio Magalhães, estreante no Correntes d’Escritas, disse que a sua notoriedade teria trazido mais público àquela Mesa de Debate, mas Rui Zink depressa esclareceu o jornalista: “Júlio, eles não estão aqui por tua causa. Isto é mesmo sempre assim”. Um dos motivos para se ter aventurado no mundo da escrita foi o fato de, por ser uma figura da televisão, poder, à partida, vender mais livros e, com isso, colaborar com as editoras no sentido de, com o lucro dos seus trabalhos, outros escritores continuarem a ser publicados.

Júlio Magalhães confessou que “toda a gente que aparece na televisão, gosta de aparecer. Temos medo que as luzes se apaguem, que deixemos de ser reconhecidos na rua. Nós gostamos disso. Por isso, quando me convidaram para escrever, aceitei. Quando, um dia, deixar de ter lugar na televisão, a escrita e o reconhecimento que ela traz, será um prolongamento da televisão”. O jornalista disse ter a noção de não escrever como os restantes convidados da noite mas, “vocês também não são tão bons em televisão como eu”, brincou. Viajar por todo o país para apresentar os seus livros, contactar com o público, com os estudantes, têm sido o maior proveito desta aventura, comentou.

Valter Hugo Mãe disse que tinha ido para aquela Mesa “para o engate. Tinha esperança que a pessoa que eu vinha engatar estivesse aqui, mas disseram-me que já foi dormir. Eu, se tivesse oportunidade, dormia quietinho ao lado do Rubem Fonseca. Mas, nesta coisa do engate, a timidez estraga-me sempre tudo”. O Prémio Saramago dedicou o seu tempo nesta Mesa de Debate ao escritor brasileiro, de quem, apenas Manuel Jorge Marmelo é a única pessoa que gosta mais dele do que eu”.

E, para terminar a noite da melhor maneira – e, já agora, também este texto – Ana Luísa Amaral leu o poema a que Rui Zink se referia, arrancando um aplauso emocionado da plateia. Aqui fica, então, Visitação ou Poema que se diz manso:

De mansinho ela entrou, a minha filha.

A madrugada entrava como ela, mas não

tão de mansinho. Os pés descalços,

de ruído menor que o do meu lápis

e um riso bem maior que o dos meus versos.

Sentou-se no meu colo, de mansinho.

O poema invadia como ela, mas não

tão mansamente, não com esta exigência

tão mansinha. Como um ladrão furtivo,

a minha filha roubou-me inspiração,

versos quase chegados, quase meus.

E mansamente aqui adormeceu,

feliz pelo seu crime.