A mesa de intervenções começou pouco depois das 22h00 de sexta-feira, dia 21, no Teatro Garrett, com mais uma casa cheia e atenta. O primeiro escritor a falar veio da Guiné-Bissau, Abdulai Sila, que fez questão de falar “olhos nos olhos” o que lhe ia na alma.

O autor referiu-se ao contexto específico africano da literatura. Para abordar o tema estabeleceu uma analogia entre a pintura e a literatura: “a repintagem representada em três vertentes – as tintas, o pincel e a tela, sendo cada elemento representado, respetivamente, por um ator – o escritor, o leitor e o crítico literário”.

Tudo começa, prosseguiu o guineense, com a pergunta pelo escritor – para quem vou pintar este quadro ou quem me vai comprar este quadro? Quem vai ser o meu leitor?

A resposta a esta pergunta é fulcral, porque vai decidir tudo o resto. Sila refletiu sobre a realidade de não haver um público abrangente e esclarecido em termos literários na Guiné-Bissau, muito menos com poder de compra para adquirir livros. Assim, o escritor é “condicionado” à partida, uma vez que “já não vai pintar o azul dos nossos oceanos, mas de outros pontos do mundo”. A tonalidade do azul vai ser alterada.

Para Sila, há outro aspeto a resolver na cultura da Guiné-Bissau que é a “descolonização das mentalidades”, porque todos os conceitos de estética e de comportamentos que persistem são dominados pela colonização.

João Gobern considerou que esta Mesa era a mais internacional das Correntes d’Escritas, porque “temos a diáspora açoriana nos Estados Unidos, uma portuguesa que viveu em Angola, um natural da Guiné-Bissau, uma escritora marroquina de língua catalã e alguém do Uruguai”.

O jornalista escreveu “3 livros em 14 anos com vendas totais de 3 mil exemplares”, mas sem grandes “proveitos”, por isso Gobern, apesar de estar presente numa mesa de escritores, propõe-se assumir “o estatuto mais habitual na proximidade com os livros, o estatuto de leitor, (…) que acaba por corresponder a uma maioria silenciosa entre os presentes na sala – devo dizer que nem sei como cheguei a esta expressão que é um pouco peganhenta e de má memória”.

João Gobern referiu-se a algumas coincidências curiosas (ou cósmicas, “mesmo não acreditando na astrologia”) entre os livros que se encontrava a ler com alguns acontecimentos que marcaram a sua vida ou a atualidade.

Alguns exemplos: quando no ano passado morreu “o meu cantor de todos os tempos”, João Gilberto, tinha entre mãos o livro intitulado “Desde que o samba é samba” de Paulo Lins; “quando me deixei apaixonar pela minha mulher (…)” andava às voltas com “Terna é a noite” de Scott Fitzgerald; “quando aterrei como habitante sem termo certo na Póvoa de Varzim, o livro era “O romance da minha vida”, do cubano Leonardo Padura”; “no 11 de setembro de 2001, juro que estava a ler “Crónica de uma morte anunciada”, de Gabriel Gárcia Márquez; quando foi eleito “o anterior presidente da República Portuguesa, tinha à cabeceira “Crime e Castigo” de Dostoiévski”; “quando me estreei nos comentários lá estava “O livro da selva”, de Rudyard Kipling; quando a mãe morreu, Gobern andava a ler “Alma”, de Manuel Alegre.

“Não vos parece que são coincidências a mais?”

Maria João Cantinho foi a escritora que se seguiu, lendo um texto preparado para estas Correntes, referindo que o tema a fez lembrar de “A flor Azul” de Novalis.

A escritora referiu-se ao “valor mágico” da Literatura, sobretudo da poesia, apontando o desafio que constitui estar frente a uma folha em branco, pois a escrita é uma “das mais exigentes tarefas para o homem”.

Maria João Cantinho considerou que nestes tempos “estranhos” e de extremismos, com retrocessos na conquistada liberdade, devemos lutar contra “o que nos destrói enquanto humanos”, lutar pela defesa da “Democracia”, cada vez mais ameaçada no mundo.

A escritora questionou se “os escritores e os poetas estarão em vias de extinção”. Por isso, “escutar o poder da palavra como a nossa redenção” é o que a Literatura nos traz de positivo, “um mistério que nos toca, esse azul que repinta as palavras”, defendeu a autora.

Mario Delgado Aparaín começou por dizer que “aprendeu a amar a Póvoa de Varzim, que se torna por momentos o centro do mundo”.

O uruguaio referiu-se à ligação da geografia às cores na Literatura. A arte nos países nórdicos apresenta um tom mais cinzento, enquanto nos países latinos há mais intensidade do branco e do azul. E se as cores nestes casos são mais sólidas, também há situações em que se tornam mais voláteis, “influenciadas pela natureza e seus fenómenos, como quando acontecem furacões”.

De acordo com Aparaín, o mar é um dos elementos mais marcantes no azul da Literatura. Assim, considerou que os requisitos para que um livro seja uma “obra-prima” estão comprometidos com a cor. “A Literatura tem cor, a vida tem cor”…

Najat El Hachmi é marroquina e emigrou em criança com a família para Espanha, região da Catalunha, onde foi aculturada pelos catalães. Escreve em catalão, embora nunca esqueça a língua berbere, transmitida oralmente pelas mulheres da sua família.

A escritora explicou que usa a literatura como um instrumento para divulgar a diversidade da mulher muçulmana e a sua importância na divulgação das tradições orais. É que, sublinhou, habitualmente, nos meios de comunicação social, a mulher muçulmana é divulgada de forma redutora como “mulher submissa e marginalizada”, logo “desumanizada”.

A finalizar as intervenções, foi apresentado Onésimo Teotónio Almeida, considerado o decano das Correntes d’Escritas e conhecido pelo seu jeito para, a propósito de cada detalhe, encaixar uma anedota.

O fim do serão foi, por isso, bem animado e a mesa terminou da melhor maneira, a rir.

Onésimo não deixou de abordar o tema proposto, referindo-se à pouca presença explícita do azul na Literatura em Portugal, “não me ocorre muito azul na poesia ou na música portuguesa”, até porque “rimas para azul estragariam qualquer poema”.

Em contrapartida, o azul em inglês (blue) abunda na poesia e as rimas também não faltam. Onésimo afirmou que existe mesmo um chamado “blue humour”, ou seja, o humor sobre tabus sociais.

A propósito contou esta anedota: “havia um rei que queria acabar com o racismo e decidiu pintar todos os seus súbditos de azul, mas nem assim o racismo desapareceu do subconsciente do seu povo. Dias depois, um condutor de transportes públicos colocou uma tabuleta à entrada do seu autocarro: azul claro à frente e azul escuro atrás”.

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