À sua maneira, cada um dos escritores convidados interpretou a essência de um verso que faz parte da celebração da liberdade: “Esta é a madrugada que eu esperava | O dia inicial inteiro e limpo | Onde emergimos da noite e do silêncio | E livres habitamos a substância do tempo”.

Estiveram na mesa de debate Ana Paula Tavares, Filipa Leal, Germano Almeida, Hélder Macedo, Juan Gabriel Vásquez e Lídia Jorge – lado a lado, veteranos do Correntes d’Escritas desde o primeiro encontro, premiados e promessas da Literatura.

De resto, é um facto que Germano Almeida gosta de evidenciar sempre que vem à Póvoa de Varzim, um espaço e um evento onde todos, “escritores e acompanhantes, são tratados em pé de igualdade e onde nos sentimos iguais”. Assim, sublinhou o autor cabo-verdiano, “estar nesta 20ª edição onde se celebram duas décadas de Correntes d’Escritas é uma experiência muito agradável e é um duplo prazer”.

O autor do romance “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo” referiu que o verso-tema da Mesa o fazia lembrar a liberdade da sua infância, na ilha da Boa Vista, onde viveu num “ambiente de quase selvajaria”.

Recordou: a “única exigência que nos faziam é que estivéssemos em casa à hora do almoço, lavados”. Esse era um tempo de liberdade, antes de a PIDE (polícia política do regime ditatorial de Salazar) chegar e mudar tudo, “perturbando as nossas vidas”.

Era uma época em que só existia um polícia na aldeia, a quem as crianças chamavam de “tio” e o diretor da principal repartição pública saía de casa para o trabalho em pijama. O único revolucionário era o habitual “bêbado” da aldeia, que, quando estava embriagado, falava mal do regime. O “tio”, quando se cansava de o ouvir, levava-o para a cadeia, “onde ficava a dormir de porta aberta, depois de manhã acordava e ia para casa…”

Germano Almeida, que viveu essa “Madrugada” de Sophia em Lisboa enquanto estudante, considera que o verso da poetiza é o que melhor evoca a liberdade trazida pelo 25 de abril, revolução que constitui “uma das mais importantes memórias” que tem como adulto.

A angolana Ana Paula Tavares é uma das escritoras do primeiro Correntes e trouxe um texto poético como forma de interpretar o verso de Sophia, o verso que evoca o “tempo de todas as vidas”, quando o “sentido do divino saiu à rua”. Para Ana Paula Tavares, Sophia deixava que “o poema fosse a própria substância do tempo”.

Filipa Leal, nascida no Porto, fez questão de sublinhar a honra que era estar no meio de escritores, que tanto admira, e num encontro que há vários anos conhece como jornalista. Abordou o tema também com um texto livre, evocando a “estranheza” da coexistência no mesmo verso das palavras liberdade e tempo…

Filipa Leal foi procurando respostas ao recordar as viagens de três dias a Paris e a Londres, com a liberdade de férias, mas com as mudanças de um tempo pouco generoso para livrarias, que se transformam em sex-shops…

Hélder Macedo, trouxe-nos a vivência de um autor que já foi preso e esteve exilado. Talvez uma interpretação “mais pessimista”, como o próprio referiu: “não sei se qualquer um de nós pode conhecer a ‘cor da liberdade’ – como dizia num verso Jorge de Sena, também ele amigo de Sophia de Mello Breyner – ou se poderemos livres habitar a substância do tempo. Estamos perante um paradoxo, pois a substância do tempo é a morte, e não podemos habitar livres coisa nenhuma”.

Juan Gabriel Vásquez, autor colombiano e vencedor do Prémio Correntes d’Escritas de 2018, estabeleceu um paralelismo da Literatura com as redes sociais. Se na primeira realidade, há a humanização, na segunda, existem teorias de conspiração e enaltecimento de comportamentos extremistas.

Então, se “a noção que temos da realidade está enferma e moribunda, como a enfrentamos, enquanto poetas e autores?” Vásquez afirma que esta interrogação e ansiedade já tem sido alvo de debate por entre escritores da sua geração, que se interrogam sobre o papel da Literatura no contexto das redes sociais. Uma coisa é certa, referiu, “se não formos capazes de continuar com o nosso projeto comum da Humanidade, então o nosso Mundo está acabado”.

Lídia Jorge, uma das vencedoras do Prémio Literário Correntes d’Escritas, assinalou a “alegria de se sentir de novo entre companheiros e por estar presente numa mesa em que podemos evocar Sophia de Mello Breyner”. Lídia Jorge afirmou ser importante evocar Sophia “como pessoa e a pessoa que criou a Poeta”.

A autora de “O Dia dos Prodígios”, nascida em Boliqueime, apresentou um texto poético evocando Sophia, a poeta que “se recusava a contribuir para o esboroamento da sua língua” e que, felizmente, passa para as novas gerações.

Este “E livres habitamos a substância do tempo” vem carregado de uma vida própria, declara Lídia Jorge, “este verso é uma síntese do seu idealismo de ser como pessoa, evoca uma utopia, a liberdade pela qual se bateu”…

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