A peça A Tempestade, de William Shakespeare, com destaque para a personagem Caliban, foi escolhida por Ana Luísa Amaral para tratar o tema: “é um texto assombroso sobre as relações de poder, o amor, a colonização mas igualmente sobre o fingimento, a capacidade de sonho e de crença, o engano e o sortilégio. Tudo assenta na dicotomia ser/ parecer e nas diferentes formas como as personagens aceitam mentiras como se fossem verdades através desse poderoso veículo que é a linguagem”.

A partir de Caliban, o escravo, a autora refletiu sobre a cisão entre escritor e leitor: “porque o escritor é também um leitor e tudo depende do papel que representa no momento de encontro com a escrita. Acreditando ele próprio no que lê, o escritor pode, por vezes, acreditar nos fingimentos que ele próprio cria, nas narrativas que, mesmo tratando-se da poesia são sempre ficções. O que existe, portanto, não é a mentira mas um outro tipo de verdade, a de uma vida defletida, transfigurada, transposta para uma língua diferente, sempre estrangeira.”

A partir do poema “Isto”, de Fernando Pessoa, a escritora referiu que “qualquer texto em si mesmo não detém tipo nenhum de emoção mas a emoção existe, localizada, porém, aquém ou além do texto no preciso momento da sua feitura e depois, quando ele cumpre o seu destino. Por isso, é decisiva a contribuição de quem lê e a sua crença através da recriação”.

Ana Luísa Amaral transmitiu que “acreditar no universo fingido que o escritor tece pressupõe que o texto produza sempre um efeito de verosimilhança, quero dizer, o que se lê pode não ser plausível mas deve ser da esfera do possível, ainda que esse possível se inscreva no domínio do fantástico. E porque somos seres para a imaginação, o que lemos toca-nos pela beleza, por uma outra dimensão de verdade contida no universo ficcional porque a verdade do texto é isso mesmo, a sua verdade, diferente da outra, a da vida. Mas sendo fingimento não é uma mentira porque está necessariamente tangente à vida mesmo que a sua vida seja uma vida paralela. Fingir é, pois, somente uma forma diferente de aceder à verdade e nesse fingimento, por muita que seja a convenção não é nunca isento nem o corpo que escreve nem o corpo que lê”.

A autora disse ainda que “a literatura pode, pois, fazer coisas curiosas tendo, em meu entender, uma funda obrigação para com aqueles que não têm voz. Ela move-nos nos dois sentidos: o da locomoção, fazendo-nos agir, e o da emoção, fazendo-nos sentir. A literatura pode ser um veículo nos tempos vários. Tem a possibilidade de coexistir: o tempo escritor, o tempo leitor, o tempo da travessia entre a escrita e a leitura”.

Álvaro Laborinho Lúcio começou por se definir como um jovem escritor (sendo que escreveu o seu primeiro romance há pouco mais de um ano) com um grande futuro atrás de si. E foi “a partir desse futuro e experiência que me deu” que abordou o tema.

O Juiz Conselheiro refletiu sobre o lugar e a função do leitor e a relevância dele na relação com o texto literário e com a figura do escritor, questionando: “onde ou até onde mente ou pode mentir o escritor e onde ou até onde acredita ou deve acreditar o leitor?”

Socorrendo-se de Eça de Queirós, citou: “o escritor, há 100 anos (1786), dirigia-se, particularmente, a uma pessoa de saber e de gosto, amiga da eloquência e da tragédia, que ocupava os seus ócios luxuosos a ler e se chamava o leitor. O autor encontrava no leitor uma atenção demorada, fiel, crente. Como filósofo, tinha nele um discípulo, como poeta, um confidente”.

Também referindo Umberto Eco, o “jovem escritor” disse que “ficção significa fingimento, o que a remete para os campos do simbólico e da fantasia. Nela se estabelece um jogo em torno de um engano proposto pelo autor e aceite pelo leitor. Trata-se de uma relação de confiança que obriga a definir no início de cada jogo quais são as regras e quem são os jogadores, isto é, quem está do lado do escritor e a quem cabe desempenhar o papel de leitor”.

Álvaro Laborinho Lúcio revelou que “não é no punho e na moral do escritor que está a verdade ou a falsidade da proclamação mas sim na fiabilidade do pacto ficcional que aqui, bem mais do que para lá do texto literário, se estabelece entre o leitor abstrato e a literatura no seu todo”.

Jaime Rocha recorreu a vários títulos de notícias publicadas em jornais para advertir que “se tivesse escrito num livro meu, os leitores não acreditavam. Mas saiu no jornal e é realidade”.

Depois, a partir do seu romance A Rapariga sem Carne, abordou o cruzamento entre a ficção e a realidade e a verdade e a mentira: “afinal, o que tinha narrado como sendo um facto fora transformado em mentira e as mentiras transformadas em verdades. E eu que apenas desejava que os meus leitores acreditassem em mim que a minha narrativa fosse, ao menos, credível…”.

O autor citou o seu companheiro de mesa, Javier Cercas: “o romancista tem obrigação de enganar” e de “fazer com que as pessoas acreditem que tudo o que conta é verdade, mesmo que seja mentira”.

Jaime Rocha revelou que “gostava que a mentira e a verdade fossem uma coisa única e o leitor disfrutasse esse prazer”, acrescentando que “a realidade suplanta, de longe, a ficção. É simples, direta, pragmática, surpreendente. Muitas vezes, não se acredita que o que está a acontecer é mesmo a realidade, é aquilo que ali está à nossa frente, insuportável, inacreditável, impensável”.

Javier Cercas, vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa 2016, recorreu à sua obra O Impostor, onde ficção e realidade se misturam na personagem de Enric Marco.

Um nonagenário barcelonês que se fez passar por sobrevivente dos campos nazis e que foi desmascarado em maio de 2005, depois de presidir durante três anos à associação espanhola dos sobreviventes, de dar centenas de conferências, de conceder dezenas de entrevistas, de receber importantes distinções e de comover os parlamentares espanhóis reunidos para, pela primeira vez, prestarem homenagem aos republicanos vítimas do III Reich. O caso deu a volta ao mundo e transformou Marco no grande impostor e no grande maldito.

Javier Cercas referiu-se à capacidade infinita que temos de nos enganar a nós próprios, no nosso conformismo e nas nossas mentiras, nas nossas necessidades contraditórias de ficção e de realidade.

O autor constatou que “uma falsidade não é uma mentira, uma mentira é pior, é uma falsidade intencional”, “a ficção é uma mentira, um engano”.

Mário de Carvalho reconheceu que “nós, escritores, é que somos a verdade. Pessoas iguais às outras mas naquilo que concebemos revelamos e entregamos aos outros. Nós somos a verdade na medida em que somos criadores da verdade. Uma verdade pode durar centenas de anos em formação, a desenhar-se, a completar-se, até apresentar um Aquiles, Ulisses ou Édipo”.

O autor referiu que “a verdade que os escritores criam tem tendência para se revelar contra as diversas formas de opressão e ressaltar, surpreender, vir ao de cima. Às vezes, incomoda, às vezes, assombra, às vezes, diverte. Teima em persistir”. Quanto ao leitor, comigo, pode deixar-se dormi descansado”.

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