Maria Flor Pedroso foi a moderadora da última Mesa desta edição do Correntes d’Escritas que, como acontece há 17 anos, levou “centenas de pessoas a escolherem passar a sua tarde de sábado junto de outros leitores a falarem sobre livros”, como afirmou o escritor peruano Fernando Iwasaki. O Cine-Teatro Garrett, com os seus perto de 500 lugares, não foi grande o suficiente para sentar comodamente todos os que quiseram assistir a esta Mesa. A frase não é original, todos os anos a escrevemos de forma diferente, mas a imagem a reter é a mesma, uma vez que é impossível fugir a ela: à falta de cadeiras para se sentarem, as pessoas não abandonaram o Garrett. Sentaram-se nas escadas, permaneceram de pé, acomodaram-se como e onde podiam. O importante era não perder pitada do que seria dito. Logo haveria tempo para endireitar o corpo.

E as primeiras ideias surgiram de Afonso Cruz que disse que “todas as coisas que realmente prezamos têm um fim. Achamos que o amor e a amizade são importantes e amamos e gostamos pelo ato em si, não pelas consequências desses sentimentos. Se acreditarmos que o nosso melhor amigo está a ser pago para o ser não vamos ficar contentes. O amor e a amizade não podem ser pagos, senão não é amizade e nem amor. Na arte passa-se a mesma coisa. O fim está nela”. Afonso Cruz afirmou escrever apenas pelo ato da escrita, embora reconheça que “aquilo que fazemos tem consequências”.

O autor de Jesus Cristo bebia cerveja afirmou, ainda, que “há pelo menos 25 anos que os políticos conhecem o peso que a cultura tem na economia do nosso país. 127 mil portugueses estão empregados graças à cultura. No entanto, os sucessivos governos teimam em não reconhecerem os números e os factos”.

José Luís Peixoto lembrou uma crítica de que um livro seu foi alvo: “alguém escreveu que a função da literatura não é lembrar-nos que vamos morrer. Discordo completamente. A literatura deve lembrar-nos que vamos morrer. Nos meus livros há uma inclinação, própria da minha natureza, para tocar sempre nessa questão. Um dos aspetos fundamentais na literatura é o tempo. Se 65% do nosso corpo é composto por água, 65% dos textos são constituídos por tempo”.

José Luís Peixoto continuou afirmando que “os livros, se não forem lidos, se ninguém lhes acrescentar tempo, não existem. Os livros não gostam das pessoas que dizem que os leem e não os leem e, mesmo assim, têm uma opinião sobre eles”.

Ainda sobre o tempo, o escritor acrescentou que “a escrita é, por natureza, uma resistência contra o tempo. O ato de escrever é o ato de inscrever e assim estamos a deixar algo que permanecerá, que irá resistir ao tempo. Mas essa resistência nunca é completamente alcançada, na medida em que o texto que for lido hoje é radicalmente diferente do texto que será lido amanhã. Nós somos diferentes daqueles que existiram há três séculos e, por isso, lemos os textos de forma diferente”.

José Luís Peixoto falou, ainda sobre a diferente entre o jornalismo e a literatura: distanciam-se pelas novidades de um mundo novo que o primeiro dá a todos os instantes. Os livros falam do que não muda, do que era e do que acreditamos que irá ser, da condição humana”.

“O fim de alguma coisa é sempre o início de outra. No entanto, o tempo é também irreversível e uma sucessão de fins. Tudo está continuamente a terminar. Termos essa consciência é bom para nós, faz-nos falta”, disse José Luís Peixoto. O escritor afirmou que “um dia vamos morrer. Mas a quantidade de dias que vamos viver será muito superior a esse dia”.

Sobre a crítica de que foi alvo e que deu mote à sua intervenção nesta Mesa, José Luís Peixoto afirmou que “sem crítica não existe literatura. É tão fundamental que qualquer escritor é o seu primeiro crítico. No entanto, há um aspeto que qualquer autor tem reservado para si próprio: após o confronto sobre aquilo que fez, podemos concordar ou discordar. No entanto, às vezes dirigimos a nossa revolta contra o reflexo e não sobre o que o espelho reflete.

Valter Hugo Mãe revelou que é abordado muitas vezes com dívidas que as pessoas querem que ele pague: “todos têm uma opinião sobre o que eu devo escrever”. E deu alguns exemplos: a senhora em Bragança que acha que ele devia escrever sobre as pessoas que dão nomes ao gado para terem a sensação de família, a mulher que o viu a escrever pela janela do quarto que acha que ele devia escrever sobre as raparigas que se apaixonam por escritores, e a viúva que acha que ele devia escrever o que desse para entender, que devia escrever sobre o seu falecido marido, que era alto, muito alto. A esta última pessoa, Valter Hugo Mãe respondeu andar “às voltas com a história de um japonês”. A resposta não tardou: “nós aqui tão aflitos com as nossas memórias e você aflito com a memória dos outros. Os livros japoneses são todos iguais. Homens baixinhos e mulheres a fazerem arroz”. Mas há mais: nos Açores um moço pediu-lhe para escrever sobre a raiva daquelas gentes, que não usam facas para não morrer em vez de matar. Um homem com a vida a terminar pediu-lhe que escrevesse mais um livro antes que ele morresse. “A minha mãe quer que eu escreva sobre a felicidade para que ela a descubra e não a possa mais perder”. E terminou com um último pedido de um leito: importa-se de escrever sobre a minha vida? Sou muito sozinho e assim podia ler um livro que imitasse que os meus pais estão vivos.

Héctor Abad Faciolince começou por dizer que os finais felizes talvez tenham sido inventados nos contos infantis. N’As Mil e uma noites, Sherazade conta contos que a salvam da morte. Na Bíblia, Jesus ressuscita Lázaro. Mas, quer Sherazade, quer Lázaro, morreram depois de terem escapado à morte. E, depois, acerca desta ideia, o escritor colombiano contou que, na quinta-feira passada, o seu filho foi picado por uma vespa enquanto lecionava uma aula de matemática. “O meu filho pegou no giz, no qual estava a vespa, e foi picado. Camilo não sentiu quase nada. Lembrou-se de uma égua preta chamada Noite que teve quando era criança. Essa égua foi picada por uma vespa e acabou por falecer. O dedo de Camilo inchou um pouco, ele saiu para lavar as mãos e voltou à sala. Anunciou aos alunos que a aula iria ser mais curta porque não se sentia bem. Depois, caiu e desmaiou. A médica que o assistiu disse que Camilo estava a morrer. Se estou aqui, já sabem que é porque a história não acabou mal. Afinal, Camilo é alérgico a picadas de vespas e, a partir de agora, tem de ter sempre consigo a medicação preventiva. O que quero dizer é que Camilo um dia vai morrer. Tal como Sherazade e Lázaro, escapou desta vez mas o fim está anunciado”.

“Conto esta história para recordar-lhes da fragilidade da vida”, terminou Héctor Abad Faciolince.

Fernando Iwasaki concordou com Valter Hugo Mãe e José Luís Peixoto: “um livro tem muitas leituras. Um livro que lemos na adolescência, aos 30, antes de sermos pais e depois, são livros diferentes”. Para o escritor peruano, há livros que são grandes cidades, como o Livro do Desassossego, onde há edifícios maravilhosos, grandes avenidas. Há livros que são cidades que crescem tanto que criam subúrbios, pequenas vilas à sua volta”.

O escritor afirmou estar, desde o início da Mesa, à procura dos leitores com menos de 30 anos presentes na sala, “talvez por ser professor de alunos com menos 30 anos. Às vezes, pergunto por um livro e os meus alunos não o conhecem. Porque os livros jamais acabarão mas os leitores poderão acabar”.

Há livros do século passado que anunciam futuros apocalípticos mas nos quais os livros existem, como o 1984. Nesses livros, os leitores desafiavam um mundo terrível através da leitura. Nos últimos anos escreveram-se livros apocalípticos que se transformaram em filmes, como o Matrix e Walking dead, que anunciam que não haverá livros no futuro.

Iwasaki afirmou não poder criticar os jovens que leram muitos menos livros do que os seus pais e avós e viram muitos mais filmes. “É o seu tempo. O que lhes posso explicar é que os filmes estão relacionados com livros”.

“Somos sobretudo leitores, alguns recomendam ou escrevem sobre livros, alguns escrevem-nos. Todos nos lembramos de um livro que não conseguíamos pousar até o terminar”.

E, a terminar o Correntes d’Escritas há 17 anos, Onésimo Teotónio Almeida começou por dizer que “nada acaba no fim, acaba antes, vai acabando aos poucos. Vou fazer 70 anos, sou muito antigo, do tempo que o arco-íris era a preto e branco. Quando eu morrer, como sou sempre eu que termino as Mesas, basta cortar o último da lista sem ter de se alterar nada do resto do programa do Encontro”. Por isso, “o fim começou no início das Correntes d’Escritas”.

O escritor açoriano contou que “desde que recebi o tema para esta mesa comecei a tomar nota sobre tudo o que se relacionasse com o início e o fim. Fiquei logo com material para um livro num só dia”.

“Quando tinha acabado de fazer 60 anos, uma revista para a 3ª idade, chamada Rugas, convidou-me para escrever artigos para ela, muito antes de eu entrar na 3ª idade. Por isso, nada começa no fim”.