Por Catarina Andrade. Póvoa de Varzim, 21.02.2018

 

Por causa da Geografia

 

Postei-me junto a uma das portas do Cine-Teatro Garrett, no primeiro dia da 19.ª edição do festival literário Correntes d’Escritas, para averiguar se é verdade que encontros como este criam leitores.

Perguntei a um rapaz que ia a entrar para a sessão de abertura o que o levava ali. Dinis, de 20 anos, respondeu prontamente: “Venho cá por causa da Geografia”.

– Da Geografia?

– Sim. Estou a fazer um Atlas Literário e, além de ler os livros dos escritores convidados, venho cá ouvi-los e falar com eles para me darem mais pormenores sobre a localização no espaço – físico ou imaginário – das suas histórias.

– Ah, muito bem. E já vai muito avançado, esse atlas?

– Já vai bastante, mas pode-se sempre acrescentar mais conhecimento. Por exemplo, tem o deserto de Atacama, no Chile, que se enche de flores nas raras ocasiões em que lá chove. Se não fosse o Luis Sepúlveda, eu ia continuar a achar que só havia desertos em África.

Tem o nosso país, descrito pelo Valter Hugo Mãe no romance “O Apocalipse dos Trabalhadores” – sabe? Era aquele cão rafeiro que seguia a Maria da Graça para todo o lado: “Um rectângulo castanho cheio de pulgas chamado Portugal”.

E depois, dentro do país, também tem sítios como o Bairro Amélia, de que fala o Bruno Vieira Amaral no seu romance de estreia, “As Primeiras Coisas”, ou o hotel do Estoril onde foram instaladas em 1975 famílias de retornados de Angola, uma por quarto, incluindo a do Rui, o narrador do romance “O Retorno”, da Dulce Maria Cardoso.

E regiões do país, como o Alentejo comovente do Rui Cardoso Martins no seu primeiro romance, “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer”, e o Alentejo do Afonso Cruz em “Jesus Cristo Bebia Cerveja”, cuja paisagem é transformada numa Jerusalém encenada por uma neta que quer cumprir o desejo da avó de visitar a Terra Santa antes de morrer.

Mas também há muitos sítios mais longe daqui. Por exemplo, Áfricas, há muitas: Moçambiques de Mia Couto, João Paulo Borges Coelho e Isabela Figueiredo, Angolas de Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho, com referências, dentro delas, a cidades como Luanda, ruas – como aquela onde Ondjaki centra “Os da Minha Rua” – e mesmo prédios, como aquela labiríntica e assustadora torre do “Barroco Tropical”, de José Eduardo Agualusa.

Se formos para a poesia, a coisa complica-se, porque os poetas se interrogam eles mesmos sobre geografias imprecisas. Acontece com o José Tolentino Mendonça, em “A Que Distância Deixaste o Coração”, com Daniel Faria, que escreveu sobre “Homens que São Como Lugares Mal Situados”, e com Golgona Anghel, no seu mais recente livro, “Nadar na Piscina dos Pequenos” – que entendo como um lugar emocional para principiantes, equivalente a andar de bicicleta com rodinhas.

É claro que há poetas que são um pouco mais objetivos nas coordenadas. É o caso do brasileiro Eucanaã Ferraz, que escreveu sobre a “rua do Mundo, onde morou a Luiza”. A rua, que deu também nome ao seu livro, fica em Lisboa, mas já não se chama assim, e a Luiza do poema era a poeta Luiza Neto Jorge.

Depois, temos aqueles lugares míticos incontornáveis, como a Comala de Juan Rulfo, em “Pedro Páramo”, e a Macondo de Gabriel García Márquez em “Cem Anos de Solidão”.

E outros como a Bahia de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, o Rio de Janeiro de Ruy Castro e João Paulo Cuenca e a São Paulo de Bernardo Carvalho ou a Curitiba de Dalton Trevisan.

Por todos estes mundos, nós podemos viajar. E agora, tenho de ir, a sessão vai começar e eu não quero perder nada”.

 

Catarina Andrade