Quaresma e Páscoa:

A quadra da Quaresma sempre foi, para o poveiro, época de arreigadas tradições e profunda religiosidade. Temente a Deus, o homem do mar da Póvoa encarava o tempo de preparação para a Páscoa com o maior respeito. Era tempo de luto e de silêncio. Até a carne era banida das suas refeições.

Cumprindo à risca os preceitos da classe, ditados pelos «homens de respeito», a partir de Terça-Feira Gorda até Sexta-Feira Santa estavam «proibidas» as cantorias e outras manifestações de alegria. Os instrumentos eram bem guardados, as roupas modestas e de cores escuras.

Quinta-Feira Santa era dia de devoção maior. Nenhum barco poveiro podia largar para a faina da pesca. À noite a família reunia-se à volta de uma ceia melhorada como se de um «Natal» se tratasse. No final, era obrigatória uma visita às igrejas. Toda a Póvoa fazia uma via-sacra pelos seus oito templos, onde se encontravam representadas «cenas de vida do Senhor» ou bonitos arranjos florais em redor do altar principal. Um típico costume poveiro que ainda hoje se mantém com o rigor do passado.

São quatro as procissões da Semana Santa: Procissão de Ramos; Procissão das Endoenças ou dos Fogaréus (do Ecce Homo ou das Lanternas); Procissão do Enterro do Senhor e Procissão da Ressurreição.

Em todas elas o poveiro marcava a sua presença com um testemunho de fé exemplar. A exaltação do «Senhor», em profundo respeito e recolhimento, fazia parte da sua filosofia de vida. Deus está presente em todo o seu quotidiano. Daí que a Semana Santa, lembrando-lhe o Monte das Oliveiras e o Calvário, toque profundamente o seu carácter de devoto extremo.

A noite de Sábado de Aleluia era dedicada à Queima dos Judas. Para alegria dos pequenos «ratos-de-água», um pouco por todo o lado, montavam-se cadafalsos com um boneco a fingir de Judas Iscariote com a saca dos trinta dinheiros na mão. À meia-noite o povo queimava-o ao jeito de vingança eterna. Antes, porém, um poeta atrevido lia um testamento em quadras populares, onde a vizinhança saía contemplada com alguns chistes a propósito.

Também pela meia-noite de sábado, saíam da igreja Matriz dezenas de rapazes com campainhas na mão. Mal soava o repique dos sinos anunciando a ressurreição do Senhor, saíam eles, ruas fora, tilintando as pequenas sinetas e gritando em coro Aleluia! Aleluia! Aleluia!

No Domingo de Páscoa a Póvoa transformava-se. O homem triste, de luto carregado, surgia transfigurado, com vestuário novo, casas lavadas, música, crianças de regueifa ao pescoço, prenda dos padrinhos. Por todo o lado jogava-se a péla, um jogo tipicamente poveiro.

Pela manhã, da igreja Matriz, saía a Procissão da Ressurreição. Um cortejo solene com todas as cruzes do compasso e um figurado rico. A visita do compasso estava reservada para a tarde. Uma visita do Senhor obrigatória a cada lar poveiro, que recebia a cruz com toda a solenidade por entre um tapete de flores. Este ritual era, para a Póvoa, a essência da quadra Pascal. Uma manifestação de fé e de crença que o homem do mar aprendeu a respeitar e jurou preservar pela vida fora.

Paralelamente a estas manifestações religiosas, o poveiro mantinha tradições pascais de cunho popular que, até hoje, o tempo conservou, tais como a Serra-essa-velha, o jogo da péla, a confeção das lanternas para a procissão dos Fogaréus, a leitura do testamento do Judas e a ida ao Anjo na Segunda-Feira de Páscoa, um gigantesco piquenique que se popularizou a partir dos anos 30 nas bouças de Argivai, quando se pretendeu promover a festa da Hera.

 

Natal:

O Natal é uma época marcante na comunidade piscatória da Póvoa de Varzim. Tempo de encanto, de alegria e tradições muito próprias, de grande significado para a gente do mar.

Ainda o Natal vinha longe e já o rapazio se perdia na compra de bonecos de barro (chamados depastorinhos), recolha de musgo (conhecido por burriço) pelos muros, confeção de castelos, pontes e moinhos de papelão, peças indispensáveis para um presépio que levava a semana inteira a ser montado, geralmente no quarto da frente, perto da janela virada para a rua, para que toda a gente do bairro o admirasse.

Depois, em grupo, os miúdos vizinhos ensaiavam no fundo do quintal as Cantigas ao Menino ou Versos ao Menino Jesus (não era vulgar chamar-se Cantar as Janeiras), com reco-reco, ferrinhos, castanholas, pinhas secas, pandeiros e testos. Eram os preparativos para a noite de consoada ou noite de ceia (Natal) onde toda a família se reunia, esquecendo zangas ou divergências antigas.

A ceia, uma mistura de prazer da mesa e culto religioso, era um festival permanente de boa disposição, de cantorias e recordações. Lembravam-se vivos e mortos, com algumas orações a preceder a refeição maior.

Para o pescador poveiro, na noite de consoada, o ruivo e o peixe seco eram pratos «obrigatórios». Toda a gente comia no chão e geralmente na cozinha, onde a lenha do fogão servia de aquecimento central.

O Pai Natal era, ainda, um desconhecido e a troca de prendas não entrava nos hábitos da gente da pesca. De árvores enfeitadas, não há qualquer testemunho.

Para os mais novos a grande prenda era a sobremesa. Esperavam, com ansiedade, os pratos de aletria e rabanadas, doces típicos (e únicos) do Natal poveiro. No final, distribuíam-se figos, nozes e pinhões, complementos indispensáveis na Ceia do Senhor, utilizados no jogo do rapa, disputado em grande algazarra por toda a família.

Acabada a Ceia, os grupos de Cantigas ao Menino, muitas vezes acompanhados por familiares, percorriam o bairro cantando de porta em porta. Em cada paragem perguntavam: – Vai ou não vai? Se alguém respondia «vai», ouvia-se, de imediato, o «concerto» de ferrinhos e reco-reco. Como recompensa, o dono da casa oferecia castanhas, figos, rebuçados ou algumas (poucas) moedas.

Noite do Menino ou de Consoada prolongava-se até à Missa do Galo, última etapa de uma noite especial, plena de religiosidade, de encantamento e de alegria.