A partir desse verso da obra Vem à quinta-feira, da autoria de Filipa Leal, a plateia do Cine-Teatro Garrett pôde presenciar um intenso debate, numa mesa que “corresponde ao espírito do Correntes, composta por duas escritoras de nacionalidade portuguesa, um brasileiro, um angolano e um venezuelano”, acrescentou Manuel Alberto Valente.

Raquel Ribeiro foi a primeira a tomar a palavra e enalteceu que o verso escolhido “não podia ser mais apropriado a mim. Sou a última pessoa a ter cuidado com as palavras e depois «lixo-me». Quebro protocolos, não vou pelos politicamente corretos e as palavras saem sem cuidado. E de repente estou a ouvir «Raquel, comporta-te!», nas palavras da minha mãe.”

A escritora natural do Porto explicou que “viver nesta contradição, de dizer o que devo e o que não devo, é difícil, mas mais difícil é ser livre da censura, da crítica, da autocrítica e do medo” e citou Chico Buarque: “Enquanto poder cantar, alguém vai ter de me ouvir”.

Em jeito de conclusão, Raquel Ribeiro garantiu: “também tenho medo, frio e não durmo de noite. Mas não sou eu que tenho de ter cuidado com as palavras, são elas que têm de ter cuidado comigo.”

O escritor brasileiro Alexandre Marques Rodrigues afirmou-se metade português, metade alemão e foi de forma divertida que considerou ser “uma grande honra estar aqui presente e voltar a casa” com a metade lusa, responsabilizando a parte alemã pela sua timidez e pelas poucas habilidades sociais que considera possuir.

Relativamente ao tema em discussão, o autor afirmou que “os poetas e escritores não têm que cuidar do ser, não carregam qualquer mensagem transcendental nem uma missão, apenas escrevem” e desta forma “não precisam de ter cuidado com as palavras”. “Quando me sento ao computador e escrevo, tomo a opção consciente de não ter cuidado. E assumo o risco de ser mal-entendido para produzir algo novo”, acrescentou.

Dando o exemplo de algum fingimento que é necessário no mundo civilizado, Alexandre Marques Rodrigues entende que esse não deve ser o caso na literatura: “Não quero que o livro minta para mim, que me queira agradar. Quero um livro que retrate as coisas como elas são, quero literatura minimamente verdadeira.”

O escritor prosseguiu a sua linha de pensamento e abordou o risco que está sempre presente na literatura: “Escrever um livro tem de ser arriscado. Há coisas que têm de ser ditas, que existem e devem ser faladas. Não escrevo a pensar que não posso trair o leitor por este se identificar com o personagem e com a sua história. Porque não hei-de eu trair o leitor? Entendo que o caminho para uma literatura que quer dizer algo importante é não precisar de ter cuidado com as palavras. A literatura tem de ferir e nunca se fere com cuidado.”

Alberto Barrera Tyszka , a representar a Venezuela, nação estreante no Correntes d´Escritas, considerou que o tema da Mesa o surpreendeu e optou por falar do exemplo prático da revolução na Venezuela. “Quando Hugo Chávez tentou o golpe militar em 1992, fracassou rotundamente. Planeou durante 20 anos e foi um desastre, mas bastaram alguns segundos na televisão para passar a herói. Reconheceu que havia falhado o golpe militar, mas no final da sua intervenção disse «por agora», duas palavras que se viriam a revelar decisivas para a história da Venezuela.”

Contextualizando, o autor descreveu a Venezuela de então como um país em “extrema pobreza, desigualdade e muita miséria”, altura em que surge Chávez “com duas palavras” e começa a construir uma nova narrativa nacional, até ganhar as eleições em 1998, com mais de 90% dos votos.

“A partir desse dia, o meu país enamorou-se por uma única voz. A palavra era uma só e portanto vazia. Chávez chegou a discutir 9 horas seguidas, sem qualquer tipo de paragem. Perdeu-se o sentido de verdade como bem comum”, acrescentou Alberto Barrera Tyszka, que entende que só há um caminho para a reinvenção da Venezuela: “a fé nas palavras e o respeito pela linguagem.”

Júlia Nery brincou um pouco com a ambiguidade das palavras ao dizer que é familiar da “contenção verbal pelas exigências da docência ou da decência, para quem possa ter entendido assim também”. “Desde garotinha ouvi como recomendação que devíamos ter cuidado com o que dizíamos, dito de forma imperativa, como uma ordem, numa altura em que repetia as palavras pelo simples prazer do som, com destaque para aquelas palavras com acentuação tónica forte, que causam embaraço, os ditos palavrões.”

A escritora entende que num mundo “meteórico”, os conceitos novos nunca existiriam sem as palavras. No entanto, “recomenda-se o maior dos cuidados, e repare-se que não disse inibições. Devemos escolher as palavras de acordo com os nossos objetivos. São o material que dá existência à escrita, pelo que devemos escolher as melhores para cada contexto, com preparação”, concluindo com a resposta a uma questão retórica: “Mas quem sou eu? Eu, que até à última linha que escreva serei uma aprendiz da palavra.”

O último a tomar a palavra foi Manuel Rui, que conquistou a plateia com um registo muito próprio e animado. O escritor angolano citou Martin Luther King, para dizer que “há momentos em que não falar é uma traição”.

Manuel Rui deu o exemplo do Presidente norte-americano, Donald Trump, para explicar que também “há momentos em que não ter cuidado com as palavras traz vantagens”, pois se o tivesse tido, dificilmente teria vencido as eleições.

O autor de Kaputo Camionista e Eusébio terminou com uma declaração muito aplaudida pela plateia do Cine-Teatro Garrett: “Quando escrevo as palavras, estas são no sentido de obter um consenso nas diferenças. É preciso saber o que custou a liberdade. Não devo ter cuidado com as palavras e muito menos com os sonhos. Mas devo saber para quem falo. Devo é ter cuidado ao atravessar as passadeiras.”

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