Póvoa de Varzim, 27.02.2010 - “Duvido, portanto penso”, verso de Fernando Pessoa, causou, a avaliar pelos testemunhos dos intervenientes na 8ª mesa de debate, muitas horas perdidas a…pensar. A “estranheza” dos temas é marca do Correntes d’Escritas, os diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema um dos “fenómenos” curiosos do Encontro Literário.
Em vez de “Duvido, portanto penso” João Paulo Sousa leu, quando lhe foi comunicado o tema do debate, “Duvido, portanto escrevo”. A preposição pareceu-lhe correcta, “significava que a dúvida podia ser apresentada como motor da escrita, representava também uma evidente aproximação às minhas preocupações sobre o meu processo de construção literária”. Para o ensaísta português, a dúvida é instituída como princípio de elaboração do texto. “O meu ponto de partida é a situação em que as personagens se encontram, de conflito ou de tensão, o que também permite imaginar uma ou outra possibilidade. Eu sei onde tudo principia e onde tudo pode acabar. Mas ignoro como lá chegar e, pior ainda, nem sei se lá chegarei”. As escolhas marcam o processo de criação literária, há “uma proliferação de caminhos”, mas o escritor não se pode libertar delas dado que tem que decidir “qual a possibilidade que tem que apresentar em primeiro lugar, em segundo, e assim sucessivamente”. Salto no escuro, “porque nunca é possível saber com exactidão qual é a melhor escolha”. A escrita é “contingente”, as escolhas vão-se reduzindo à medida “que as palavras aumentam”. Há uma “asfixia da dúvida, porque se reduzem as escolhas possíveis” que podem levar ao concluir da obra.
Vítor Burity da Silva, leu uma dissertação sobre o tema, ou como resumiu o moderador José Mário Silva, apresentou um texto literário “sobre a dúvida como estado de emergência poética”. “O preâmbulo da dúvida como metástase da existência”, iniciou o escritor angolano, “este beco de subtilezas anacrónicas no rastilho de palavras inócuas que me percorrem o silêncio, virando-me às avessas, contra mim mesmo. Sem questionar-me sobre quem fui, indo, duvidando de mim próprio nestas lestas e parcas províncias do raciocínio que me deitam num mar de dúvidas sobre verdades sem sentido nenhum”.
“Os motes das mesas são autênticos abacaxis que custam a descascar. Já me tinham avisado”. Assim confessou Paulo Moreiras das dúvidas com que foi assaltado acerca do tema. “As dúvidas eram muitas e múltiplas as abordagens que poderia desenvolver, mas estava sem ideias”. Essas surgiram quando leu, há cerca de 15 dias, no suplemento Y um texto de Luís Francisco sobre o sexo na literatura portuguesa e, no mesmo suplemento, um texto de Isabel Coutinho sobre o escritor Juan José Millás onde este diz “gosto muito de tudo aquilo que é capaz de causar estranheza”. Pouco disto parece ter a ver com o tema, mas, disse o romancista e poeta moçambicano, “as dúvidas surgem sempre de onde menos se espera”. E de facto, ao ler estes dois textos lembrou-se um conjunto de dúvidas que teve quando andou a pesquisar para o seu recente romance Os Dias de Saturno, sobre os últimos dias de Domingos Rodrigues, cozinheiro do Rei D. Pedro II e autor do primeiro livro de cozinha publicado em Portugal em 1680, Arte de Cozinha. Paulo Moreiras teve que pesquisar um vasto conjunto de livros de culinária e receituários e deparou-se com a peculiaridade de algumas expressões usadas na culinária portuguesa, “onde se notava um forte pendor erótico, por vezes explicito, por vezes dissimulado, e questionava me sobre o que queria dizer na realidade”. As palavras “nem sempre querem dizer o que realmente dizem” e, para exemplificar, enumerou vários exemplos que abundam na nossa doçaria, e que uma vez mais encheram o Auditório de gargalhadas. É característica portuguesa “gostar de dizer as coisas sem muitas vezes as nomear em concreto. A língua portuguesa é muito traiçoeira e permite muitas leituras”. Considerando que pouco a ver com o tema teve a sua intervenção, Paulo Moreiras defendeu-se dizendo que “não consegui deixar de pensar nas dúvidas que tais leituras me provocaram, pois a cozinha nunca esteve muito longe da cama”.
Lourenço Pereira Coutinho falou de dúvida e de pensamento. “A dúvida, e não falo da mesquinha nem da que resulta em desconfiança, mas sim da que dúvida que nos leva a interrogar, a pensar, a descobrir, é simultaneamente sinónimo da incessante busca humana do conhecimento e também a constante demonstração perfeita da imperfeição da espécie”. Sempre presente “em todos os momentos da nossa caminhada” a dúvida é “entranhadamente nossa”. “Hoje continua a ser prova da nossa insaciável curiosidade, da incapacidade de aceitar o que escapa à impossibilidade de demonstração”.
Sobre o pensamento, considera que é o pensar “que nos faz profundamente livres, profundamente humanos. Pensar porque se duvida, duvidar e pensar. Por isso, escrever. Escrever para exteriorizar afectos, inquietações, medos, raivas e alegrias. Como acto de profunda liberdade que se renova a casa frase, cada palavra”. Mas Lourenço Pereira Coutinho sente-se à vontade com a dúvida. “Felizmente, sei que nunca encontrarei resposta para as minhas dúvidas que não deixam de me desinquietar, de obrigar a pensar e assim perceber o quanto sou humano e o quanto preciso de escrever”.
Não era suposto Sérgio Luís de Carvalho estar nesta 8ª mesa de debate, mas sim na 7ª. Trocou com Pedro Pinto, a pedido deste último. A comunicação, já a tinha preparado sobre o tema da mesa em que ia participar inicialmente. “As palavras cercam-nos como um muro”. Assumiu, com humor, que não se preparou com este tema, “afinal tudo é muito parecido”, gracejou. Contou histórias que fizeram rir a audiência, como a de D. Ermelinda que, há muito anos, aprendeu, em Angola um dialecto local. Veio para Portugal mas nunca encontrou ninguém com quem falar aquele dialecto. Por isso, explicou o escritor, “às vezes fala-o comigo e com a minha mulher, mesmo sabendo que nós não compreendemos. Ela prefere a incompreensão ao silêncio”. Mas, como fez ver, estamos “aparentemente” numa sociedade que privilegia o silêncio, a avaliar pelos inúmeros provérbios que isso defendem: ‘As palavras são de prata mas o silêncio é de ouro’, ‘uma imagem vale mais que mil palavras’, entre muitos outros. Mas não é bem assim, explicou o escritor lisboeta, lembrando, por exemplo, os silêncios incómodos, aqueles que nos encontram quando partilhamos um elevador com alguém desconhecido. E, continuou ele, a nossa sociedade não privilegia o silêncio porque todos têm opinião sobre algo e, acrescentou ele, nem nos minutos de silêncio, por exemplo nos estádios de futebol, as pessoas conseguem estar em silêncio, optando por bater palmas. “Frequentemente, o que nos fazemos é o oposto daquilo que esta mesa sugere. Reparem, se dissermos ‘duvido porque penso’ ou ‘penso, logo duvido’, tendencialmente isto encaminhar-nos-ia para o silêncio. E não é isto que sucede. Tendencialmente, o que nós fazemos, é dar opiniões”. Mas deixou uma última ideia. “Eu não quero que encarem estas minhas palavras como se eu estivesse a sobrevalorizar o silêncio e a menosprezar as palavras. Se assim fosse tinha escolhido o ofício errado. Há palavras e palavras, há silêncios e silêncios”.