A 20ª edição do Correntes d’Escritas arranca oficialmente esta manhã mas ontem o Cine-Teatro Garrett acolheu já uma conversa sobre a vida e a obra de José Régio.
Intitulada “Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém”, a mesa reuniu Ramiro Reis Pereira, Lauro António, Luís Adriano Carlos e Maria Bochicchio. Valter Hugo Mãe conduziu a conversa.
A Ramiro Reis Pereira, poeta e sobrinho de José Régio, Valter Hugo Mãe pediu que falasse sobre a sua faceta familiar. O moderador introduziu o tema lendo parte de uma carta que Régio enviou ao sobrinho (escrita no Diana Bar): “Já recebi duas cartas tuas, pelo menos, – a última de há quase um mês. Esta demora não significa que eu te esqueça! Bem pelo contrário, lembro-me constantemente de ti, de vós os três. Significa apenas que atravesso um período de grande trabalho. A minha casa editora resolveu que este ano seria «o ano de José Régio», e manda-me provas sobre provas de livros a reeditar. Como, nestas provas, me não limito a sublinhar as gralhas, pois sempre corrijo o texto, dá-me isso bastante que fazer”.
Ramiro Reis Pereira recordou os Natais em família, sempre muito especiais. O poeta contou que, junto à Árvore de Natal e ao Presépio, existiam sempre duas maças, tradição iniciada por José Régio. Durante muitos anos Reis Pereira não soube o significado das maças: o Natal significa nascimento e as maças, relacionadas com o pecado, Adão e Eva, significam também o início.
O “mistério das maças” foi abordado por todos os outros participantes devido à religiosidade – ou falta dela – de José Régio.
Lauro António, aluno de José Régio, explicou que, como professor, o poeta era austero e difícil. “Tinha uma figura espantosa, sem um único cabelo fora do sítio. Vestia-se de forma notável para os anos 50. No entanto, penso que tinha uma certa frustração por ser baixo”. A este propósito, Lauro António contou que as secretárias dos professores estavam em cima de estrados. Quando os alunos tinham dúvidas ou eram chamados para apresentar algum trabalho, os professores permitiam que subissem aos estrados: “todos exceto José Régio”.
Além de ter sido seu aluno, Lauro António conviveu com Régio desde criança, uma vez que o seu pai e o poeta eram grandes amigos. Quando estreou Bonnie e Clyde, o cineasta escreveu um artigo elogiando o filme. José Régio, por outro lado, considerou o filme moralmente muito perigoso e reprovou os críticos que elogiaram: “mas não citou o meu nome”. Lauro António afirmou que “sempre tive uma grande admiração por ele apesar de ele me ter chumbado”.
Para o cineasta, “Régio é um dos maiores poetas portugueses. Como prosador já não tenho tanta certeza”.
Para Luís Adriano Carlos, José Régio é um dos primeiros e maiores críticos do nosso tempo, muito maior que Fernando Pessoa, que era intuicionista. O professor universitário confessou não ser fã da poesia de Régio apesar de contar com cinco décadas de estudo sobre o escritor e a sua obra. Luís Adriano Carlos considera que Régio inventou o modernismo português em 1925 e que a sua poesia é teodiceica (conjunto de argumentos que, face à presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a crença na omnipotência e suprema bondade do Deus criador contra aqueles que duvidam de sua existência ou perfeição).
Maria Bochicchio explicou porque uma italiana se interessou por José Régio. “O escritor conseguiu perceber o seu tempo e abrir caminhos para a geração surrealista. Há um pudor paradigmático na vida de Régio, uma vida quase secreta, muito discreta, sem grandes aventuras, procurando o isolamento. Há uma necessidade profunda de confissão. Isso despertou o meu interesse. Tinha uma visão interessante como homem moderno e ocidental do ponto de vista da religiosidade, filho do seu tempo. Ter valores cristãos era o certo no seu tempo. Régio vive dilema grande: religiosidade do lado materno, com rituais pagãos, e uma espiritualidade profunda que procura a verdade das coisas. Vejo em Régio a procura da autenticidade. O que é a religiosidade? Vejo nela muita religiosidade”.
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