Póvoa de Varzim, 16.02.2008 - "Cada Homem é uma Língua” foi o tema que encerrou as mesas de debate desta 9ª edição do Correntes d’Escritas, que hoje terminou.
Nela participaram alguns dos grandes vultos da literatura de expressão ibérica. Foram eles Leonardo Padura, Mia Couto, Onésimo Teotónio de Almeida, Pepetela e Tabajara Ruas, num debate moderado por Maria João Seixas, que do tema disse ser “complexo, enigmático e estimulante”, comparando-o ainda à grandeza do mar “e contraditório nos termos”. Foram várias as abordagens feitas, tantas ou mais do que os escritores participantes, perante um público que mais uma vez encheu o Auditório Municipal.
Três equívocos e uma sugestão resume a intervenção de Mia Couto, cuja recriação da língua é já sua imagem de marca por julgar que “é necessário inventar uma língua para reproduzir a natureza humana que quero mostrar”. Para o escritor moçambicano o primeiro equívoco passa por se achar que esta recriação linguística passa apenas pela literatura; o segundo de que é um processo linguístico; e o terceiro equívoco de que o “escritor tem à sua disposição uma língua já feita. Ambicionamos falar a língua dos sonhos e só ganhamos individualidade quando aprendemos a falar a língua de todos os homens, a língua dos sonhos”. E deixou uma sugestão: a recriação não tem a ver com o aspecto literário, tem a ver com ser feliz, com fazer da linguagem um brinquedo. “Não somos apenas usuários da língua, somos seus autores”, disse, acrescentando ainda que “precisamos de uma escola que nos liberte da dimensão funcional da palavra, para que sejamos inventores da língua e viajantes do sonho”.
“Pensei que este tema era perfeito, pois parecia-me que nele tudo cabe”, disse Pepetela, antes de listar os vários aspectos sobre os quais pode ser analisada a língua. Começou pela biologia, por descrever os vários tipos de língua que poderia ser; depois, pela questão do uso da língua portuguesa, tema já mais do que debatido, como acrescentou; pela questão da uniformização da língua, dando exemplo de gerações de escritores africanos que “torturam a língua portuguesa” para serem lidos. Mas nenhuma destas abordagens mereceu agradou a Pepetela, que preferiu analisar a questão imaginando a língua como vivência singular, que provoca uma sensibilidade própria. “Cada pessoa tem o seu percurso dentro do mesmo grupo”, explicou, “ e percursos díspares levam a respostas singulares”.
A análise técnica veio pela mão de Leonardo Padura. “Cada homem é a sua língua”, começou por dizer, analisando depois a evolução da literatura cubana e da língua literária cubana, que nasceu do emergir, a partir do século XX, da “consciência da necessidade de criar uma linguagem literária”, criada a partir da revitalização da linguagem popular. Passando para as personagens, o escritor cubano explicou que a linguagem por elas utilizada atribui-lhes características, permite saber de que estrato social é ou qual a sua maneira de pensar. E essa linguagem também se adapta às circunstâncias pois, como explicou, “a linguagem que uso aqui não é a mesma que uso na minha rua, entre amigos”, uma afirmação que justifica a sua não concordância com o tema, explicando que “um homem é muitas línguas e todas essas línguas são um homem”.
“Camões, / Seu nome retorcido como um búzio! / Nele sopra Netuno…”.Assim começa um poema de Mário Quintana, que Tabajara Ruas considerou ter sido a sua epifania. Tinha pouco mais de 20 anos quando se deparou com os escritos do também autor brasileiro, aos quais não ficou indiferente, até porque, como explicou, “nem eu nem meus amigos percebíamos aquele idioma”. E foi uma homenagem a Mário Quintana que Tabajara Ruas apresentou ao público, sob forma de um texto sobre o escritor mal-amado, mal compreendido e esquecido, que em vez de ser entendido como provocador, era antes considerado antiquado.
Para quem já conhece o Correntes d’Escritas, já conhece também Onésimo Teotónio de Almeida, e já sabe que nas suas intervenções nunca faltam as histórias e as anedotas. Por isso, foram muitas as gargalhadas que eclodiram no Auditório. O sotaque foi o aspecto escolhido pelo escritor para debater o tema. Como explicou, “cada um de nós fala o nosso dialecto, com o nosso timbre”, continuando dizendo que “a língua não é de ninguém, cada um fala a sua língua”, que em grade medida depende da localização geográfica das pessoas. “A língua é bonita porque é nossa, quer a que aprendemos em casa, quer a que aprendemos na Pátria”, concluiu.
Terminou assim um ciclo de nove mesas de debate que proporcionou momentos de grande beleza a quem assistiu. Discutiu-se música, poesia, a volúpia e a perversidade na escrita, a realidade e a literatura. Para o ano há mais, mas pode sempre revisitar o Correntes d’Escritas 2008 no portal municipal.