Começa sob os melhores auspícios (direi mesmo, face às circunstâncias, sob as melhores bênçãos…) esta edição do Correntes d’Escritas: com a abertura pelo Prémio Pessoa de 2009 (D. Manuel Clemente, Bispo do Porto) e poucos dias após a atribuição do mesmo Prémio, de 2011, a Eduardo Lourenço – figura referencial, pelo estatuto e pela assiduidade, desta iniciativa que, há 13 anos, chama à Póvoa de Varzim actores cimeiros do pensamento e da literatura ibero-americana e conhecedor, como poucos, da obra de Pessoa, de cujo universo filosófico partiu para a construção de um pensamento tão singular. (Que outra iniciativa pode orgulhar-se de reunir, entre tantas e tão notáveis figuras das culturas ibero-americanas, dois dos portugueses que mais sustentadamente reflectem sobre Portugal e a sua relação com o mundo, particularmente com a Europa?).

Distinção cuja justiça se não questiona é o Prémio Pessoa de 2011. O que espanta é a circunstância de não ter sido atribuído há mais tempo: só pela “modéstia” e “generosidade” da sabedoria daquele que agora é aceite como “o maior pensador português do nosso tempo”.[1] Teve de “esperar” 25 anos para receber o prémio que tem como patrono o grande génio português do século XX, de cujo estudo Lourenço foi um esclarecido pioneiro. “Fernando Pessoa Revisitado” (de 1973) é uma obra-prima do nosso ensaísmo literário, dando-nos do poeta, que nunca teve consciência da sua dimensão excepcional, uma perspectiva que entretanto se fez consensual. E, descobrindo Pessoa, Lourenço encontrou o caminho para a singularidade do seu pensamento no contexto da filosofia europeia contemporânea: é que ele conheceu Pessoa muito antes daqueles que, por essa Europa, só nos anos 80 o descobriram. O contributo de Pessoa para a formação filosófica de Lourenço nota-se na sua linguagem, cujo discurso literário lhe facultou a possibilidade de ir mais longe do que a pura expressão filosófica, cuja racionalidade era, em si mesma, incapaz de responder a questões que o atormentavam. Por isso, Lourenço é, além de um notável pensador – alguém que, como reconhece José Gil, é dotado dessa “coisa raríssima” de ter um pensamento e uma maneira muito singular de o desenvolver: autocriar-se, criando novos campos, pois a lógica do seu pensamento conduz necessariamente à produção do novo, que ele próprio explora ou induz à exploração dos outros – Lourenço é também “um dos grandes prosadores da literatura portuguesa contemporânea” [2], em cuja escrita a fronteira entre o político e o literário é, muitas vezes, um limite de difícil definição.

Ainda bem que a edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço, agora iniciada sobre o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, vai possibilitar-nos o reencontro deste pensamento único, tão antigo e tão actual, tão heterodoxo e tão livre e de uma mundividência tão vasta. E, por isso, nos levará ao encontro de Aristóteles, de Descartes, de Kierkegaard, de Foucault, de Platão, de Montaigne, de Schopenhauer, de Nietzsche, de Unamuno e tantos outros filósofos, assim como nos leva à redescoberta, ou a novas interpretações de Camões, de Cesário, de Antero, de Pessoa, de Nemésio, de Eugénio, etc. Todos, filósofos e poetas, convocados, na perenidade de um pensamento e de uma linguagem que ajudam a compreender-nos, para este diálogo incessante entre a cultura universal e a cultura portuguesa, sendo que, como dizia Torga, “o universal é o local sem fronteiras”.

De facto, é em torno desta dialética entre duas visões do mundo conflituais – de um lado, o provincianismo messiânico, “como se os portugueses se tivessem constituído como segundo povo eleito de Deus”; do outro, o racionalismo e o empirismo europeus, “atitude mental causadora da laicidade do Estado, do espírito científico, da democracia política e do cosmopolitismo universalista, de que Portugal foi vanguarda no dealbar dos Descobrimentos” – é em torno destas duas visões que evolui o diálogo entre as culturas europeia e portuguesa no último século e meio, com 3 vértices marcantes: o que, na sequência do constitucionalismo liberal, se expressou nas Conferências Democráticas do Casino, de 1871 – chamemos-lhes vértice histórico-filosófico, caracterizado pelo projecto modernizador, de abertura à razão e ao mundo; o vértice literário, patente na ousadia modernista do Orpheu, já de algum modo antevista em Cesário Verde; e, por fim, o vértice político-social, com a revolução de Abril de 74 que direccionou para a Europa o rumo que, nos 4 séculos antecedentes, dera corpo, por esse mundo fora, à ambição imperial portuguesa.

Se na Europa o século XX foi curto – se o situarmos entre 1914 (inicio da 1ª guerra mundial) e 1989, ano da queda do muro de Berlim (ou seja, da implosão do império soviético) – já o século XX português foi consideravelmente mais longo, pois teve inicio em 1890, com a grave crise política, económica e social que conduziria ao fim da monarquia, despertando o triunfo de um racionalismo de matriz positivista, até sensivelmente 1930 – data que poderemos considerar o início de um longo período de providencialismo messiânico autoritário, que em 1974 daria início a uma relação com a Europa cuja natureza, sentido, âmbito e profundidade foram uma construção de lideranças políticas que nunca convocaram o povo a assumir este desígnio, cujas contradições são muitos anteriores e mais profundas que as recentes crises das dívidas soberanas.

Portugal e os portugueses – esta complexa identidade, construída sobre elementos tão contraditórios – têm alimentado muitos pensamentos filosóficos, que Torga tão bem define quando diz “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.”

Figuras como José Mattoso, Eduardo Lourenço e, mais recentemente, D. Manuel Clemente são as referências mais conhecidas de uma plêiade de investigadores a que devemos associar os nomes de Fernando Gil, José Gil, Onésimo Teotónio de Almeida (que está connosco desde o 1º Correntes), Viriato Soromenho Marques, e tantos outros. (Lembro, a propósito, o livro recente de Miguel Real “O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010)”).

A situação que vivemos, em Portugal e na Europa, e particularmente na relação entre Portugal e a Europa, não é nova. Revisitar a história, e sobretudo relembrar as suas lições, constitui, neste momento, um imperativo, que incultas e surdas lideranças se recusam a pensar.

De facto, a Europa assistiu inquieta e sonolenta à alteração das principais linhas da geopolítica, e manifestamente não sabe como lidar com estas novas realidades: Democracia, globalização (ou competitividade) e mercados, que, segundo Dani Rodrik, ilustre Professor de Harvard, são valores entre si incompatíveis – a democracia não resistirá aos mercados; Democracia e globalização com competitividade global levarão à pressão dos direitos e salários ao nível da China e da India e de mais países cujo custo da mão-de-obra é muito baixo, logo ao desaparecimento do estado social, a essência do nosso modelo; Democracia e mercado – encontraremos a essência da governabilidade tendo como referência não a cidade (a polis) mas a empresa (os mercados), o que nos tem trazido a esta designada pós-democracia sem governos eleitos, “transferindo o poder do povo para entidades de legitimidade democrática questionável”, como refere Habermas no seu último livro “On Europe’s Constitution”. A Europa continua a imaginar-se importante, quando cada dia são maiores a sua dependência e irrelevância, face à concorrência dos novos blocos políticos e económicos, num mundo cuja desregulação a Europa aceitou e até incentivou e com a qual será sempre incapaz de competir, como já referi.

Mas a crise actual, porque é mais política que económica ou financeira, só politicamente pode ser resolvida. É esta a lição da história – a crise actual é mínima comparada com a crise europeia do século XX (duas guerras mundiais) e, não fossem os Estados Unidos a resgatar-nos e a crise económica do aço, que levou à constituição do Tratado de Roma, CEE e União Europeia, consolidando a paz e o progresso, por obra de um grupo de visionários e estadistas (Jean Monnet, Schuman, Adenauer, De Gaulle, etc), novos conflitos teriam surgido. Foi o receio que os europeus alimentavam relativamente ao bloco soviético, e as lideranças que internamente esse receio reforçou, que contribuíram então para que o projecto europeu desse passos firmes no sentido da sua integração e consolidação – circunstância que a queda do Muro, então precipitadamente interpretada como “o fim da história” e caminho livre para o domínio euro-americano, veio abalar, com a emergência de pulsões nacionalistas até então contidas ou sufocadas e a velha (e nunca resolvida) divisão entre os europeus do norte (puritanos, protestantes e ricos) e os do sul (generosos, católicos e pobres) – ou, se preferirmos, entre um bloco germânico (defensor e promotor do rigor) e um bloco latino (indisciplinado).

Estas linhas de fractura, além de dificultarem o processo de integração, expuseram uma forte convergência entre populismos de matriz diversa e a salvação tecnocrática – mistura que representa uma objectiva ameaça à democracia na Europa, aliás já referida, na Grécia e na Itália, países cuja história e cujo contributo para a nossa civilização comum deveriam fazer-nos, a todos, pensar que este caminho, imperioso no imediato, não se confirma no pensamento premonitório da pós-democracia referida nos anos 80 por Vaclav Havel e por dois ‘jovens’ alemães, por coincidência nascidos no mesmo ano (1929) – Hans Magnus Enzensberger e Yürgen Habermas, sobreviventes do pensamento do período pós-guerra, magistralmente exposto na obra já referida sobre a Constituição da Europa e numa outra traduzível por “Monstro Doce de Bruxelas ou a Europa sob tutela”, em que ambos denunciam o défice democrático da tríade Parlamento, Conselho e Comissão, na qual, paradoxalmente, o órgão eleito – o Parlamento, menos representa face aos cooptados Conselho e Comissão, propondo mesmo uma nova arquitectura legitimada pelos europeus: um Presidente, um Governo (governança transnacional) e um Parlamento.

Urge, de facto, uma nova Europa: como confirma também, há muito tempo, Eduardo Lourenço, esta velha Europa está a desaparecer, porque perdeu o papel hegemónico que longamente exerceu ao longo da história e não sabe, agora, como posicionar-se entre as novas potências.

Se não corrigirmos a rota, tudo indica uma caminhada para a desintegração e para o desmoronamento, comprometendo irremediavelmente o ideal da unidade europeia por que lutaram tantas gerações sacrificadas e os fundadores do Tratado de Roma.

Em 1930, num momento semelhante ao actual, o grande filósofo espanhol Ortega y Gassett dizia[3] que o problema da Europa não era de essência, mas de escala: só a unidade europeia permitiria reunir a massa crítica necessária para fazer brotar uma liderança capaz de levar a Europa a sair dos seus próprios labirintos. “Os europeus – disse Ortega – não sabem viver senão quando estão lançados numa grande empresa unificadora. Quando esta falta, os europeus tornam-se vis, desumanos, perdem força…”.

O debate que actualmente se trava, no espaço europeu, entre os integracionistas e os desintegracionistas, ou seja, entre defensores e adversários de um estado europeu, navega por entre estas contradições: a força dos estados-nação e o peso da identidade cultural dos povos, de um lado; e a inexistência de uma política económica comum, o desfasamento entre a moeda única e as diferentes economias, por outro; e a tudo isto um estado europeu, e o seu governo único, não terão possibilidade de responder em tempo útil, a menos que, neste continente fundador das democracias modernas e orientador de práticas democráticas em território alheio, a democracia seja suspensa, e a construção europeia, no que ela comporta de mais estruturante quanto ao modelo e à profundidade, seja de facto imposta aos povos, aceitando os seus actuais estados, passivamente, a perda de soberania e, consequentemente, de liberdade.

Fez agora 20 anos que, na sequência da queda do Muro e da reunificação da Alemanha, os líderes europeus, reunidos em Maastricht, deram o passo mais ousado para a integração europeia. A criação da moeda única – aí decidida, e concretizada uma década depois – foi a face mais visível da vontade política de unir as nações europeias naquilo que Gorbachev designou como Casa Comum de todas elas.

Só que o tratado, que perspectivava a construção da união europeia apenas nas suas vertentes monetária e orçamental, era incompleto e assimétrico.

De facto, previa uma política monetária única, mas deixava as políticas económicas a cargo dos governos nacionais; e criava um Banco Central, responsável único pela política monetária, mas omitia uma política orçamental e fiscal conjuntas.

Os governantes de então, que se não atreveram a alargar o tratado à união política dos estados subscritores, como propõem hoje os autores que já referi, confiavam que o crescimento induzido pela força da nova moeda comum criaria o ambiente propício à futura aceitação fácil daquele objectivo.

A realidade encarregar-se-ia de demonstrar a fragilidade desta ambição: se os alicerces da Casa Comum eram, desde logo, insuficientes, sucessivos erros de construção ameaçam fazê-la desintegrar-se e ruir.

Se, no meio século que antecedeu a moeda única, a Europa viveu em paz sob o império da lei, do progresso social e da convergência económica, com a moeda comum cresceu a desigualdade entre as nações e no interior de cada nação. Ou seja, perdeu-se em pouco tempo o que levou décadas a conquistar – e que não mais se recuperará, porque as condições económicas que propiciaram a criação do bem-estar social como marca do modelo europeu de desenvolvimento não voltarão a estar ao nosso alcance, como atrás referi com Rodrik.

Não creio no sucesso das medidas que se anunciam para conquistar os cidadãos europeus para a nova arquitectura da sua Casa.

A desconfiança instalada, diariamente reforçada por decisões que parecem visar efeito oposto ao anunciado, gera o reforço da consciência nacional dos povos e, portanto, afasta os cidadãos do sentimento, que verdadeiramente nunca existiu, de pertença a um espaço comum.

A Europa oscila hoje, claramente, entre o federalismo e a desintegração – ou seja, entre um tratado que a todos aponte um destino comum e a catástrofe da recessão e da guerra.

Os poderes não legitimados que a dirigem, e que programam o calendário das decisões colectivas em função dos seus interesses particulares e burocráticos, apontam agora, vagamente, para os próximos anos um processo decisório – burocrático e lento, como é costume – no termo do qual o tratado que constituirá a união política europeia será submetido a referendo em todos os estados-membros, confrontando os cidadãos com estas alternativas: ou aceitam o novo tratado – e o seu país integra a união política e a moeda única; ou o recusam – e o seu país permanece numa pequena associação e fora da moeda comum.

Este é, a meu ver, o caminho certo para o fim do ideal europeu, com a crescente marginalização dos países do sul. O “patriotismo constitucional”, de que falou Habermas quando a ex-RDA acrescentou 5 novos estados à República Federal da Alemanha, bem poderia orientar a senhora que, vinda do lado de lá do Muro, parece não ter percebido que os europeus só aceitarão uma Europa alemã com uma Alemanha mais europeia.

Assim sendo, como saímos desta encruzilhada? Tal como um caminhante perdido no deserto, o melhor é regressar à origem (fundadores) e partir de novo, em direcção a uma Europa que não se restrinja a uma entidade geográfica, histórica, cultural, política ou económica mas que encerre também a ideia da Europa filosófica que nasceu na Grécia e coincide com o conceito universalista dos povos europeus, se quisermos uma Europa mítica ou espiritual, que nos leva à origem mitológica da Europa: essa princesa lindíssima, filha de um rei fenício, Agenor, e de sua mulher, Telefassa, nascida num porto oriental da costa do Mediterrâneo, por quem Zeus se apaixonou, metamorfoseado em touro, raptando-a e levando-a para a Grécia, onde casaram e tiveram filhos.

Pois bem, se quisermos que, 2000 anos depois, esta nova Europa não seja de novo raptada, desta vez pelo touro dos mercados de Frankfurt, teremos de assumir de novo a política de controle dos mercados, das fronteiras regionais, regulando a globalização e legitimando as instituições pelos cidadãos.

Esta é a visão de um cidadão europeu que necessita de agir localmente sem as interferências burocráticas e baixo a tutela desse monstro actual que é a Europa de Bruxelas porquanto, citando Emmanuel Todd, “só neste caso e só com ele, caberá afirmar que depois da democracia continuará a haver democracia”.

Se o projecto europeu falha, defende também Habermas, então a pergunta que se põe é “quanto tempo vai demorar a adquirir o estatuto que ganhámos. Lembrem-se da revolução germânica de 1848 que, quando falhou, demorou 100 anos a atingir igual nível de democracia”.

 

Póvoa de Varzim, 23 de Fevereiro de 2012

O Presidente da Câmara

José Macedo Vieira


[1] Rui Vilar, Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, na nota de abertura de Heterodoxias I, 1º volume da obra completa de Eduardo Lourenço, apresentado em Dezembro de 2011.

[2] João Tiago Pedroso de Lima, da comissão científica para a edição das obras completas de Eduardo Lourenço (Universidade de Évora)

[3] “A Rebelião das Massas”, ensaio, 1930.