António Brito, António Mota, David Machado, Goretti Pina e Marina Perezagua, com moderação de Onésimo Teotónio Almeida, abordaram o verso da obra Auto-retratos, de Paulo José Miranda, que deu o mote para uma conversa que prendeu a atenção da plateia de início ao fim.

Depois de uma breve e divertida introdução por parte do moderador, que considerou que o colocaram “no meio de duas mulheres bonitas para o fazerem parecer mais feio”, foi dada a palavra a António Brito, estreante no Correntes d´Escritas e que pediu à “magnífica plateia” que lhe “amparasse a queda” nesta sua “primeira aterragem” no grande evento literário.

Relativamente ao tema, António Brito considerou-o “desafiante” e passou a explicar que mesmo que tudo estivesse escrito, tal não impediria o escritor de “tentar atingir a perfeição com os seus textos”. O autor entende que “somos senhores do nosso destino e dizer que não está tudo escrito é afirmar que não há repetição da história, podem é haver semelhanças em contextos diferentes. A única repetição está nos temas, o bem irá sempre enfrentar o mal até ao fim dos tempos, com palavras antigas e novas.”

Dando o exemplo do seu pai, o autor perguntou se quem não sabe ler e escrever não tinha também palavra, apesar de não se poderem expressar através da escrita: “dos milhões de analfabetos existentes no mundo, quantos não escrevem nas suas mentes o que ainda não foi escrito pelo poeta e pelo escritor?”

António Brito entende que “é a ficção que garante o prestígio e o desenvolvimento das civilizações. Sem a ilusão de que o mundo pode ser perfeito, a vida não faria sentido e sem a ficção viveríamos sem essa luz desafiadora que nos invade e sobressalta. A palavra é o cimento do que se convencionou chamar de cultura e educação. Cada um lê o livro e o entende à sua maneira. Leitor e escritor são ambos pais da mesma obra e por isso tudo é novo.”

António Mota explicou que o verso que deu o mote à Mesa 5 o “fez recordar o longínquo tempo em que comecei a descobrir o mundo, na minha aldeia. As casas estavam sempre cheias de pessoas e os cães, as galinhas, os gatos e as vacas andavam todas à solta. Tudo se aproveitava.”

O escritor natural de Baião contou que quando os jovens da sua aldeia eram enviados para a Guerra Colonial, “as mulheres ficavam tristes”, algo que não compreendia, pois diziam-lhe que “estava escrito que era assim”.

Dando um relato muito vívido da sua infância, António Mota confessou que em criança “queria ser carteiro como o Sr. Silva, que estava em contacto com a aldeia inteira. Mas tinha de ser muito forte para não cometer pecados. Para não ler o que os outros tinham escrito. Portanto imaginava que pecaria só com algumas cartas, as mais interessantes.”

O escritor concluiu com um regresso aos dias de hoje, com a aldeia vazia e o Sr. Silva a não passar duma boa recordação: “Não sei se estava escrito. O carteiro agora nunca é o mesmo e não sobra tempo para conversas.”

David Machado reconheceu que a primeira vez que ouviu o tema da Mesa ficou desagradado, mas que “agora agradeço, por ao fim de tanto tempo me permitir transformar uma determinada pessoa em personagem.” De seguida, o autor lisboeta contou a história de Joca, um amigo de infância que passava a vida em “trapalhadas”, tinha uma certa “atração pelo abismo” e acabou preso: “numa época em que o mundo inteiro parece feito de plasticina para nós moldarmos, a infância, ao Joca nunca lhe pareceu ser possível mudar o seu futuro.”

O escritor recordou um episódio que o marcou profundamente enquanto jovem, quando o seu amigo o convenceu a entrar na casa dum surdo-mudo conhecido no bairro, para lhe pregarem um susto. David Machado lembrou “a casa repleta de palavras soltas nas paredes, sem muita lógica. Não tenho memória do que lá estava escrito, mas aquela imagem ficou.”

Retornando ao verso que deu o mote para a conversa, o autor afirmou que “graças à escrita é possível mudar o passado. O que estava escrito deixa de estar. Talvez um dia possa contar a história de um Joca diferente, a querer alterar o seu destino. Talvez um dia possa contar a história de quando entramos os dois na casa do «mudo» para lermos as paredes, darmos um sentido àquelas palavras e resgatarmos aquele homem da miséria e do esquecimento.”

Goretti Pina revelou que se reviu no que disseram os anteriores oradores e brincou com a situação: “é mesmo para contrariar a minha ideia de que não está tudo escrito desde sempre.” “Entendo que acreditar nisso seria assumir a escrita como um exercício de reciclagem. Tomar isso como certo e querer ser escritora não faria sentido. Seria triste pensar assim, porque a escrita é uma forma de abraçar a vida”, complementou a autora.

De seguida, a escritora santomense fez um paralelismo com a moda, a sua outra grande paixão: “disseram-me que já tudo foi inventado, podia ter desistido mas não o fiz, porque acho que é sempre possível fabricar algo novo. E da mesma maneira penso sobre a escrita. Os temas podem manter-se, mas muda sempre a perspetiva. Quero ter a ilusão que o que escrevo seja algo novo. Talvez não seja verdade, mas é a minha verdade”, concluiu.

Marina Perezagua foi a última oradora da manhã e falou sobre o fascínio que sente com “a beleza do que ainda há por escrever” e por isso discorda do tema, que “implica algo tão ousado como dizer que não há vida para além da Terra. 80% do universo é matéria obscura, que não é observável. Os temas que faltam escrever são comparáveis com essa matéria obscura. Tudo o que não se pode imaginar também existe.”

A escritora espanhola acredita que por “não vermos algo não significa que não exista. A expressão «não há cura para a Sida» está incorreta, pois devia dizer-se que «não vemos cura para a Sida». Centro-me na palavra visão, pois é essa visão que permite que os grandes génios se antecipem ao seu tempo. Devemos estimular a criatividade, nas ciências, nas artes e na literatura também, porque dizermos que já tudo foi feito seria afirmar que a capacidade intelectual do homem atrofiou e a espécie humana estagnou.”

“A evolução humana leva milhares de milhões de anos a produzir algum tipo de mudança. A criação literária segue em paralelo. Não está tudo escrito, ainda somos umas crianças”, concluiu Marina Perezagua sob forte ovação do Cine-Teatro Garret.

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