Póvoa de Varzim, 26.02.2011 - Com poesia, histórias, gargalhadas e muita emoção realizou-se, esta tarde, a última Mesa da 12ª edição do Correntes d’Escritas. Yvette Centeno, Luis Sepúlveda, Manuel Rui, Mário Delgado Aparaín, António Victorino d’Almeida e Onésimo Teotónio Almeida lembraram, se é que alguma vez foi esquecida, a magia deste Encontro e a vontade de voltar, sempre.
A plateia, que preencheu todos os espaços vazios do Auditório Municipal, sentando-se nas cadeiras, no chão ou ouvindo de pé, com cada um dos intervenientes viveu emoções distintas, tão depressa passando do riso, à reflexão, à comoção e à indignação.
Maria Flor Pedroso foi a moderadora de serviço nesta 9ª Mesa, cujo tema foi “Nada no mundo deve ser subestimado”, um verso de um poema de A. M. Pires Cabral.
Quando conheceu o tema, Yvette Centeno pensou que “as coisas bonitas são feitas do acaso e naquele momento eu estava a traduzir um poema de Paul Celan, que termina exactamente desta forma: Tudo é menos do que é, tudo é mais”. Yvette Centeno leu todo o poema – Entrada de Violoncelos – do escritor alemão, afirmando que “além da erudição, que todos gostamos de ouvir, é bom ouvir um pouco de poesia”. Mais do que esta coincidência, a escritora encontrou outros pontos em comum entre a obra de Celan e os temas das restantes Mesas, como “A minha arte é uma espécie de pacto” e “Não há palavras exactas”.
Luis Sepúlveda contou a história de um capitão alemão, cujo lema de vida era que “nada no mundo deve ser subestimado”. Em 1921, partiu de um porto na Alemanha, no seu barco de 14 metros, para uma grande travessia no Atlântico para cumprir um desejo: sobrevoar a Terra do Fogo e a Patagónia. Quatro pessoas, além de um cão e da sua esposa, faziam parte da tripulação. A uma certa altura da viagem a mulher não quis continuar a viagem, fazendo as malas e regressando ao seu país natal. No barco esqueceu-se de uma peça de roupa interior preta muito sensual. A tripulação perguntou ao capitão o que fazer com a peça que, como nada no mundo deve ser subestimado, respondeu que deveriam guardá-la. Algum tempo mais tarde, o mau tempo atingiu a embarcação e o capitão foi atirado à água. Nadou até à margem com o seu cão e, sem roupa, desfeita durante o naufrágio, alcançou a costa. Para vestir e caminhar até à comunidade mais próxima, a 100 quilómetros dali, só a peça de roupa interior preta muito sensual que o cão tinha arrastado com ele. No diário de bordo que escreveu posteriormente, o capitão mencionou que foi o primeiro homem que os pinguins viram vestidos de tal forma.
Terminando, Sepúlveda lembrou que este lema de vida tem agora “uma aplicação urgentíssima. Quando um grupo de miseráveis e ladrões, que não são mais do que duas mil pessoas, todas perfeitamente identificáveis, tomam conta do mundo na maior das crises económicas, os nossos governos subestimaram a nós, cidadãos, ao dar dinheiro a estes miseráveis. Têm que entender que não podemos ser subestimados”.
Manuel Rui olhou para este tema com uma preocupação dogmática. Para o escritor angolano “cada palavra sozinha perde sonoridade e sentido. Só umas com as outras me iriam fazer chegar ao texto do dever de não subestimar e as palavras primam pela sua natural socialização”. Tantas vezes, desabafou, “não deveria ter subestimado pessoas que falavam comigo sem que eu as ouvisse”.
Recordou a viagem de António Victorino d’Almeida a Angola e a visão de que um coqueiro se assemelhava a uma mulher, afirmando que os frutos lembravam os seus seios.
Manuel Rui discordava: “Não, maestro, são muitos seios. Só se tirarmos todos de maneira a ficarem só dois cocos.” Continuou, “depois chegou um compadre meu que me perguntou se o meu amigo era maluco e eu disse: não, é músico”. O meu compadre, o mestre Kamosso, fez então um desafio ao maestro e realizaram um dos mais improváveis duetos musicais”.
Para o escritor, “há apenas uma coisa que deve ser subestimada, a subestimação”.
Mário Delgado Aparaín emocionou-se e emocionou. A sua intervenção frisou que a grande doença do século XXI é a crise da auto-estima. “Mais que um cancro, mais que a sida, a falta de amor por nós próprios, a ideia de que pouco ou nada temos para contar, é a verdadeira doença”. Para o escritor, esta crise provém da “ruptura dramática entre gerações, do vínculo cortado entre jovens e velhos, distanciando-nos, assim, da nossa memória”. A melhor notícia que as televisões podem dar é de um apagão, pois só assim, sem tecnologia, acendemos uma vela e vemos pela primeira vez os olhos da nossa avó. “Resmungamos porque ficamos sem luz mesmo quando, na novela, o marido ia apanhar a esposa com o amante. E não perguntamos à nossa avó como era ter um amante em 1940 – e de certeza que a história que ela nos iria contar seria muito mais erótica que a da novela, porque foi real”. Para Mário Delgado, “com as histórias dos nossos antepassados descobrimos que cada um de nós tem uma história para contar e que, cada uma, é o resultado de uma nação”.
António Victorino d’Almeida afirmou que “quem não valoriza está automaticamente a subestimar”. Fez referência ao episódio contado por Manuel Rui e recordou, também ele, o mestre Kamosso e o seu instrumento musical, o ungo. “Este instrumento só toca uma nota, mas não subestima o ritmo, o timbre, a intensidade. Eu acrescentei, com o piano, mais onze notas musicais, mas ele deu-me o poder de jogar com o ritmo, com o timbre e com a intensidade”. Para o maestro, o nada não existe. Desde o Big Bang que “todos passamos a existir, a única coisa que passou a ser inatingível foi o nada. Associamos a vida ao tudo e a morte ao nada, quando na verdade apenas nos transformamos, mas não chegamos a ser nada”. Assim, o músico não subestima as letras. “Em alemão, liebe quer dizer amor. O ‘e’ não se lê, mas tem que lá estar, porque se escrevêssemos libe estaríamos a escrever queca. Por isso, recuso-me a escrever ator.”
Onésimo Teotónio Almeida referiu-se aos nomes, que muitas vezes subestimam os seus proprietários, “como no caso de António Feio ou no meu próprio caso, que nem chego a milésimo. Há outros casos, cujos nomes sobrevalorizam, como Mário Pissarra ou José Sócrates”. Para o escritor, “Marcelo subestimou a vontade de alguns portugueses. Salazar foi mais justo. Subestimou a vontade de todos os portugueses”.
No final, uma mensagem: “Não subestimem os políticos. Eles são capazes de muito pior”.