Póvoa de Varzim, 14.02.2009 - São dez anos de Correntes d’Escritas. O momento é de festa, mas também de memória. Memória daqueles que não estando mais entre nós, fazem parte do Encontro, contribuíram, de uma forma ou de outra para o seu enriquecimento.
É o caso de Eduardo Guerra Carneiro, Eduardo Prado Coelho, Henrique Abranches, José António Gonçalves, Michel Laban, Ramiro Fonte e Ray-Güte Mertin, homenageados esta tarde.
“Com esta sessão de homenagem estamos a falar com amigos de amigos que contribuíram para a literatura portuguesa”, frisou Luís Diamantino, Vereador do Pelouro da Cultura, que abriu a Sessão de Homenagem.
Vítor Quelhas recordou Eduardo Guerra Carneiro, convidado da primeira edição do Correntes d’Ecritas, “cronista e bom poeta”, que deixou a sua presença “não só na memória, mas também no nosso coração.” Nascido em 1942, suicidou-se em 2004. “O suicídio é sempre uma causa própria e inexplicável”, considerou o jornalista, crítico literário e documentarista. Recordando as “noites de copos” que passavam juntos, “em que falávamos de tudo, inclusive de como a vida podia ser madrasta”, Vítor Quelhas enumerou as várias qualidades de Eduardo Guerra Carneiro, um homem “generoso”, “egocêntrico quanto baste”, “extremamente talentoso.” Mas mais do que palavras, Vítor Quelhas preferiu usar a poesia, dizendo dois poemas de Eduardo Guerra Carneiro que definem “a sua alma, o seu espírito, o seu brilho pessoal.” Poemas esses em que se notava o fascínio pelo ideal de mulher que perpassava a poesia do homenageado, a busca “pelo arquétipo da mulher ideal.”
Sobre Eduardo Prado Coelho, Luís Diamantino recordou que, quando participou pela primeira vez no Correntes d’Escritas, para proferir a Conferência de Abertura, não mais quis ir embora, prolongando a sua estadia até ao final do evento. “E queria ser o último a ir”, lembrou o Vereador. A justa homenagem coube ao também jornalista e crítico Francisco Belard, que via com admiração e também alguma crítica esta grande figura da literatura portuguesa. “A crítica ao Eduardo surge em textos que ele próprio escreveu” contou, dizendo ainda que “foi precoce” na escrita, ao ter lançado o seu primeiro livro com 19 anos. Filho de um Jacinto (Prado Coelho) e de uma Dália, dizia que só podia ser narciso. Um apontamento humorístico de uma figura que usava também o humor para criticar os outros, um “maldizer” pelo qual “era perdoado e perdoava” mas em outros casos “mantinha-se aquela raivinha de estimação.” As doenças graves fizeram “com que os ombros deixassem de aguentar o mundo”, como escreveu numa carta à filha, Alexandra Prado Coelho. Eduardo Prado Coelho faleceu em Agosto de 2007.
Henrique Abranches, nascido em Lisboa em 1932, apadrinhou os primeiros passos literários de Ondjaki. Por isso o escritor angolano homenageou o seu amigo, lembrando-se dos tempos em que viviam na mesma rua, partilhavam da mesma mesa e das conversas sobre livros, apesar da diferença de idades, já que Ondjaki nasceu em 1977. “Poeta, prosador, pintor, um excelente pintor, Henrique Abranches foi também o percursor da Banda Desenhada em Angola”, lembrou Ondjaki que encontrou na declamação de “Ode Urbana”, da autoria do escritor desaparecido em Agosto de 2004, a mais importante forma de homenagem.
Luís Carlos Patraquim partilhou com José António Gonçalves, poeta que morreu em 2005, um encontro de Escritores na Madeira. “Devo-lhe para além de uma deriva poética, a possibilidade de ter participado, no pós-25 de Abril, num acto anti-colonial”, contou o escritor e jornalista moçambicano. Em comum, e para além da poesia, tinham o gosto pelo jazz e por Miles Davis. “O percurso dele foi luminoso, com iniciativas editoriais interessantes. E em sua homenagem vou ler um seu poema, «Poesia»”, concluiu.
Michel Laban, estudioso da literatura africana foi homenageado pelo angolano Luandino Vieira. Apesar de avesso a homenagens, e contando que não sabia praticamente nada da biografia do catedrático francês, o escritor considerou que “os poucos e bons amigos que tenho tê-los-ei sempre.” A relação de amizade entre os dois nasce porque Michel Laban foi tradutor de Luandino Vieira. “Um tradutor exponencial”, elogiou. “Só passei a conhecer a minha infância quando lhe respondi a milhares de perguntas”, contou Luandino, recordando as perguntas-armadilha de Michel Laban que levavam a um sem-número mais de novas questões, para que a tradução dos livros fosse possível. “Devo-lhe, para além de me ter devolvido a minha infância, a música. Só aos 62 anos percebi que é a suprema das artes a que nada se pode acrescentar”, recordando que, o mérito por O Livro dos Rios se deve a Michel Laban, que enviava música para inspirar o seu escritor. “Certamente que me encontrarei com ele, somos ambos pecadores, para continuar a nossa conversa”, concluiu.
A existência de fronteiras criadas pelo Homem serviu de mote à homenagem de José Manuel Fajardo a Ray-Güte Mertin. “A mais cruel das invenções do Homem é as fronteiras”, analisou. Portugueses e Espanhóis são construtores dessas fronteiras, sem saber “o que há entre nós, o que nos une e o que nos separa.” Por isso, e como considerou o escritor espanhol, “é preciso sair do nosso território (…) saber compreendermo-nos desde dentro.” Ray-Güte Mertin foi capaz disso, “de saber ver o que tinham em comum ambas as culturas.” Na sua agência literária reuniu escritores de expressão portuguesa e espanhola, foi responsável “pelo emergir de novos autores, como Karla Suarez, Adriana Lisboa, Ondjaki, José Eduardo Agualusa.” E assim, levou “o nosso mundo hispano-luso para todos os outros mundos”, considerou José Manuel Fajardo, para quem o Correntes d’Escritas, como espaço de união da literatura de expressão ibérica, “é a homenagem ao esforço de Ray-Güte.”
Ramiro Fonte foi o responsável por ter levado o Correntes d’Escritas até Lisboa, mais concretamente até ao Instituto Cervantes, do qual era director. Foi também amigo de Vergílio Alberto Vieira, nos inúmeros passeios que davam por Lisboa, nas visitas ao Rossio, “às casas de fado”, ao Bairro Alto “de sombras”, à “Galicia de outros tempos”, como recordou o autor bracarense. Poeta, espanhol, com um sentido de humor desconcertante, faleceu em 2008, não sem antes deixar um texto, que Vergílio Alberto Vieira leu, emocionado. E porque as homenagens singelas, em que nada se diz, são, por vezes, as mais sentidas e justas, uma caixinha de música, colocada na mesa por Vergílio Alberto Vieira, encerrou a homenagem a Ramiro Fonte.