Deixem Falar as Pedras, de David Machado, narra a história de Nicolau Manuel. No dia em que se ia casar, Nicolau Manuel foi levado pela Guarda para um interrogatório e já não voltou. Viveu, assim, quase toda a vida na urgência de contar a verdade a Graça dos Penedo, a noiva que mais tarde lhe seria arrebatada pelo alfaiate que lhe fizera o fato do casamento. Porém, sempre que se abria uma possibilidade, uma ameaça desviava-o dramaticamente do seu destino – e agora, meio século volvido, está velho de mais para querer mudar as coisas, gastando os dias com telenovelas.

De tanto ter ouvido ao avô a sua história rocambolesca, Valdemar – um rapaz violento e obeso apaixonado pela vizinha anoréctica e fã de heavy metal – não desistiu, mesmo assim, de fazer justiça por ele. E, ao encontrar casualmente a notícia da morte do alfaiate, sabe que chegou a hora de falar com a viúva: até porque essa será a única forma de resgatar Nicolau Manuel da modorra em que se deixou afundar.

Alternando a narrativa dos sucessivos infortúnios de Nicolau Manuel – que é também a história de Portugal sob a ditadura, com os seus enganos, perseguições e injustiças – com a de um adolescente que mantém um diário com numerosas passagens rasuradas como instrumento de luta contra o mundo –, Deixem Falar as Pedras é um romance maduro e fascinante sobre a transmissão das memórias de geração em geração, nunca isenta de cortes e acrescentos que fazem da verdade não o que aconteceu, mas o que recordamos.

Ricardo Romero descreve, assim, Nenhum Lugar: “O silêncio e a calma do deserto só eram interrompidos pelo chispar do seu isqueiro. Acendia-o e colocava-o em frente dos olhos esperando que o vento o apagasse. Quando o vento o apagava, voltava a acendê-lo e a chama elevava-se por um instante, vibrando na sua alaranjada transparência, até que a brisa o fazia desaparecer outra vez. “Talvez devesse comprar um cachimbo” – pensou Maurício, “dizem que é uma boa maneira de deixar de fumar”. Isto era o que Maurício pensava. Entretanto, todo o deserto parecia estar à espera que o seu isqueiro ficasse sem gás.”