A 37ª edição do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim (FIMPV) terminou no passado dia 31 de julho depois de 15 espetáculos que abordaram diversas épocas da História da Música e que foram ao encontro das preferências das mais diferentes sensibilidades do público.
O certame teve início com “A Paixão Segundo S. João”, de Johann Sebastian Bach, e congregou os admiradores da música barroca e não só, cuja afluência levou a que, na Igreja Matriz, se registasse uma lotação praticamente esgotada. Foi um concerto de grande qualidade, sem desníveis, desde a solidez do Coro e Orquestra Gulbenkian, aos solistas com carreira já firmada, como Ana Quintans ou Fernando Guimarães. Michel Corboz dirigiu o conjunto com admirável sensibilidade e bom gosto. Ainda no âmbito da música barroca, o último concerto, a cargo da prestigiada orquestra Gli Incogniti dirigida pela violinista Amandine Beyer, foi preenchido com música instrumental de Corelli primorosamente interpretada.
A música antiga (Medieval e da Renascença) foi defendida pela Cappella Pratensis através do programa ‘Coimbra Connection’ dedicada à música provavelmente praticada no mosteiro de Santa Cruz daquela cidade, ao longo dos séculos XV e XVI. O agrupamento holandês confirmou as suas reais qualidades, apresentando-se bem entrosado e com notável adequação estilística. Por sua vez, o Ensemble Céladon apresentou dois programas distintos: o primeiro, dedicado à Música da Renascença Portuguesa, em que se destacou a revisitação de vilancicos, canções ou romances tão conhecidos como ‘Puestos estan frente e frente’ (descrição dramática dos últimos momentos de Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir) ou ‘Não tragais borzeguis pretos’. O segundo programa trouxe-nos algumas das mais significativas canções da lírica amorosa trovadoresca (da actual Provença), como a célebre ‘A chantar m’er’ da condessa Beatriz de Dia.
A venezuelana Gabriela Montero abriu a série de música de câmara com um recital dedicado, na primeira parte, a Schubert (os íntimos Improvisos op. 90) e ao virtuosístico Carnaval op. 9 de Schumann, a demonstrarem todas as potencialidades técnicas e expressivas da pianista, a dar-nos a sensação de que toca sem rede, tal a entrega permanente. Como previsto, a segunda parte foi reservada às célebres ‘improvisações’ da intérprete sobre temas sugeridos pelo público, uma delas, bem sentida, à sua Venezuela. Um dos concertos mais aguardados era o do Artemis Quartett, substituído à última hora pelo Armida Quartett, por falecimento do violetista poucos dias antes. Pois o concerto pelo jovem quarteto alemão acabaria por revelar-se como um dos mais interessantes desta edição. Um programa exigente (música de Beethoven, Shostakovich e Schubert), perfeito, imaculado. Ainda no domínio da música de câmara, destaque para a estreia de quatro obras decorrentes da 8ª edição do Concurso Internacional de Composição da Póvoa de Varzim, pela dupla André Baleiro (barítono) e João Paulo Santos (piano): ‘Three Seasons’ de Cyrill Schürch (1º Prémio), ‘Sós’ de Jacobo Gaspar Grandal (2º Prémio), ‘O milagre do elefante’ de Alberto Caparrós Álvarez (Menção Honrosa) e ‘Three Settings of Larkin’ de Vasco Mendonça, Presidente do júri.
Quanto à rúbrica ‘Jovens Intérpretes’ que o FIMPV tem por hábito incluir na sua programação, ano após ano, o recital por Ana Madalena Ribeiro (violino) e Daniel Hart revelou-se bem significativo sobre o actual nível do ensino da música em Portugal. Dois premiados no “Concurso Jovens Músicos da RTP Antena 2” da edição de 2014, ligados de algum modo à nossa Escola de Música: perfeição técnica, musicalidade e um já apreciável entrosamento. A nossa formação residente – o Quarteto Verazin – apresentou este ano música de Samuel Barber, Arvo Pärt e Maurice Ravel. O célebre Adagio do primeiro, “Fratres”, do segundo e o Quarteto em Fá maior do compositor francês mereceram fartos e justos aplausos da assistência.
Raúl da Costa foi protagonista em dois concertos, sempre integrado no trio formado pelo jovem violoncelista ucraniano Aleksey Shadrin e pelo veterano violinista (e também cineasta) Bruno Monsaingeon. Ficou-nos na memória a interpretação da Sonata op. 19 de Rachmaninov, cuja beleza e lirismo expressivo foram transmitidos com natural empatia comunicativa e à altura das exigências técnicas da partitura. Raúl da Costa prossegue o seu percurso com segurança e resultados cada vez mais convincentes. No segundo concerto, a prestação de Bruno Monsaingeon foi sobretudo dedicada a três dos seus filmes-documentários mais famosos, com o apoio do jornalista e crítico musical e de cinema Augusto Seabra. Como conversador de exceção, Monsaingeon revelou algumas das suas curiosas e instrutivas memórias sobre os distintos vultos com quem trabalhou e privou (Sviatoslav Richter, Glenn Gould e o ainda vivo Valery Sokolov).
A habitual conferência de Rui Vieira Nery acabou por ser transferida para a última semana do FIMPV. O musicólogo realçou a contribuição que a música de origem popular (ameríndia e africana) e a erudita europeia trouxe para a formação da identidade musical dos Estados Unidos, apoiado em excertos musicais e de filmes históricos.
Pela primeira vez na Póvoa de Varzim, a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música – uma das formações sinfónicas mais categorizadas –, de momento, foi dirigida pelo seu maestro titular Baldur Brönnimann com segurança, trazendo-nos música de Mendelssohn e Beethoven. Deste, ouvimos inicialmente o Concerto nº 2 em que foi solista uma autêntica revelação, o pianista russo Yury Martynov, em estreia em Portugal, cuja solidez técnica, imaginação e simpatia conquistaram o público com a maior naturalidade. O concerto acabou com uma interpretação da Sinfonia ‘Eroica’ absolutamente convincente, iluminando a sua complexa arquitectura com um afirmativo e solar discurso.
Finalmente, uma breve abordagem à récita pela soprano Raquel Camarinha, com a cumplicidade de Yoan Héreau (piano) e do encenador Aleksi Barrière. Seguramente um dos espetáculos mais conseguidos desta edição. E a aposta era bem alta: nada menos do que ‘La Voix Humaine’, «o monodrama lírico por excelência» de Jean Cocteau / Francis Poulenc. Raquel Camarinha encheu o palco, tal o sentido dramático (e lírico) que conseguiu imprimir ao texto, prendendo o público do primeiro ao último minuto. Eficaz a intervenção de Yoan Héreau ao piano. Nota alta também para o encenador Aleksi Barrière (filho da célebre compositora finlandesa Kaija Saariaho), responsável igualmente pela régie simultânea da legendagem e das imagens vídeo. Foi um espectáculo apelativo, coerente e comovedor.
O FIMPV continua a beneficiar dos apoios estruturantes da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, da Direção-Geral das Artes, do Turismo de Portugal, de diversas instituições e empresas (ao abrigo da Lei do Mecenato).
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