Autópsia de Um Mar de Ruínas, romance singular pela dupla perspetiva da guerra colonial que nos apresenta, comporta duas narrativas paralelas: uma centrada na ação dos militares portugueses no Norte de Angola, outra num quotidiano de medo e miséria, na revolta silenciosa e fria, na vitimização de duas sanzalas. Numa delas vivem pessoas de distintas etnias que para ali foram desterradas sob suspeita de relação familiar ou cumplicidade com os guerrilheiros; a outra aldeia fundaram-na soldados que desertaram dos exércitos de libertação e se renderam à tropa, para com ela combater a guerrilha que se infiltrava em território angolano a partir da fronteira.

Eis, pois, um romance construído sobre duas linguagens, dois pontos de vista, duas razões sociais, duas histórias dentro da História contemporânea do colonialismo e da guerra – a realidade adversa de dois universos humanos em situação de emergência. Se o assunto e a narrativa alternam ao longo do romance, é contudo na dupla linguagem do autor que se centra a diferença entre esses dois mundos em guerra, sob a vertigem do mal e através da criação de vozes e de narradores distintos, no fulgor de uma escrita literária em sintonia com a experiência do vivido.

Este foi o mundo que o autor conheceu em Angola, ao longo de mais de dois anos de comissão, como enfermeiro militar, entre centenas de homens, mulheres e crianças, por conta das suas dores de alma, das suas doenças, dos males de viver e morrer na guerra. Nesse sentido, Autópsia de Um Mar de Ruínas – agora profundamente revisto e reescrito com vista ao apuro definitivo da linguagem, o que sempre esteve nas preocupações e na intenção do escritor – pode sugerir-nos um compromisso superior entre ficção e mundividência, do autor e de quantos viveram o seu requiem africano, o canto fúnebre da vida contra a morte.

Em Os Naufrágios de Camões, Timothy Rassmunsen enceta uma correspondência com Mário Cláudio, na qual defende que o autor d’Os Lusíadas não teria sobrevivido ao naufrágio no delta do Mekong, e o capitão da nau onde viajavam, Bartolomeu de Castro, se teria feito passar por ele, dando continuidade à epopeia. Tão insólito arrazoado, mesmo que alegadamente apoiado nos escritos do explorador britânico Richard Burton, enche Mário Cláudio de desconfiança, mas dá-lhe a ideia de elevar o transtornado Timothy a figura de romance. Uma tragédia impede-o, porém, de perseguir o objetivo. Falho de personagem, vira-se o escritor para Burton, o descobridor das Nascentes do Nilo e tradutor d’Os Lusíadas, narrando-lhe as peripécias na busca de uma das musas do poeta português, e da localização da Ilha dos Amores, ou em delírios mediúnicos nos quais Burton encarna Camões, e conversa com o fantasma de Bartolomeu de Castro. É então altura de dar voz a Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China, aquela que viria a naufragar, o único que poderá afinal esclarecer-nos sobre o que na verdade aconteceu. Poderosamente imaginativo, polémico e inteligente, com um trio de personagens irresistíveis, o romance Os Naufrágios de Camões constitui uma peça literária fascinante.

Seguiu-se à sessão de apresentação de livros, a exibição do documentário realizado por Jorge Campos: Os dias de Mário Cláudio – Tocata & Fuga.

“Durante 4 anos, Jorge Campos acompanhou Mário Cláudio com o propósito de criar um filme que combina a exposição com a reflexão e a participação – um olhar diferente sobre os trabalhos de Rui Barbot no seu propósito de ser Mário Cláudio, escritor português, inovador na escrita, viajante do seu tempo, do nosso tempo.

Enquanto relato monográfico é simples seguir o trajeto de Rui Barbot, a infância, a vida do estudante, os graus académicos, o serviço militar, o despertar para a vida literária, os cargos que ocupou, as viagens que fez, os livros que escreveu. Mas essa não é a parte mais interessante. O que permite encontrar um sentido nesse percurso são os episódios no seio dos quais o conflito de Rui Barbot consigo mesmo e com os outros vai sendo plasmado, reorientado, sublimado, na literatura, por e com Mário Cláudio.” (retirado de Vigília Filmes).

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