E porque o tema se relaciona também com viagem, Vergílio Alberto Vieira fez questão de atribuir a cada participante uma cidade e um escritor a ela relacionado. A Viena de Robert Musil, a Praga de Kafka, a Paris de Mário de Sá Carneiro, a Lisboa de Fernando Pessoa, a Sevilha de João Cabral de Melo Neto e a Alexandria de Durrel abriram, sobre forma de citação, cada uma das seis intervenções.

A Antonio Orlando Rodriguez calhou o envelope número um, destinando-o, assim, a inaugurar o debate. “Os livros podem levar-nos a lugares inesperados”, atirou o autor cubano, recordando que em sua casa não se lia. “Mas eu nasci leitor e a casa encheu-se de livros. A literatura ensinou-me que o mundo era maior que a minha rua, que o meu bairro, que a minha ilha. Ensinou-me que existiam outros mundos, reais e imaginários, que os livros permitiam conhecer.” E foi assim, através dos livros, que Antonio Orlando Rodriguez foi mil e uma personagens, “até os dois maridos de Dona Flor”, brincou. “Os livros levam-nos pelo passado, pelo hoje, pelo futuro. Levam-nos ao encontro de nós mesmos. O romance, a poesia tocam-nos e permitem vermo-nos nas palavras que escrevem outros”, afirmou, fazendo mesmo uma comparação entre livro e espelho, que reflecte sobre aquilo que lemos em nós. Viajar fisicamente é possível, pode-se ir a centenas de lugares diferentes mas “onde estaria eu senão dentro de mim mesmo?”, perguntou.

“Não me interessam para onde me levam os livros no sentido de sítio.” A afirmação é de Rui Costa, que considera que os livros o levam “onde a viagem me faz perder o preconceito, tento sempre aprender mais”, afiançou, num exercício que o leva a ler autores com os quais não sente afinidade. Comunidade, de Luís Pacheco, Pedro Mexia, sobre o qual Rui Costa diz ser contrário a certas opiniões “mas que não consigo deixar de ler pelo cinismo, pela ironia, pela angústia”, e Daniel Faria, poeta que apesar de noviço no Mosteiro de Singeverga tinha um poesia “onde há muito físico, muito corpo”, são alguns exemplos. Se ler é viajar, escrever “é uma atitude política, no sentido de que todos os animais são políticos, pois precisam de beber, de comer, de sexo, de arte.” Ficar do lado de fora é esforço que Rui Machado considera infrutífero pois “ficar de fora é sempre a parte de dentro de outro lugar.”

Paris, a cidade que Mário de Sá Carneiro escolheu para morrer é a cidade onde nasceu José Mário Silva “mesmo não querendo.” A participar pela primeira vez no Correntes d’Escritas, o jornalista freelancer e escritor considera estes temas de debate apontados pela organização “sabiamente armadilhados.” E a armadilha de ‘Por onde me levam os livros’ reside, na sua opinião, “subtilmente concentrada no pronome me” que leva de encontro à individualidade. “Um livro leva-me para todo o lado. É o mais completo dos passaportes. Um livro pode ser uma caravela, um TGV, uma nave espacial, um meio de transporte no sentido metafísico.” Na sua abordagem, considerou também que o livro é uma forma de conhecer novos locais “não só os que existem como os que não existem (…) Se há pessoas que lamentam não conhecer lugares reais, eu lamento não conhecer lugares que não existem.” Sobre os seus próprios livros José Mário Silva diz que não sabe onde eles o levam “ou sei bem demais”, referindo, como exemplo, o livro que se encontra a preparar e que o vai levar “às memórias do rapazinho que fui.”

Num sorteio com felizes coincidências, a Lisboa de Fernando Pessoa foi parar às mãos de Inês Pedrosa, Directora da Casa Fernando Pessoa. Evocando uma canção de Caetano Veloso, que diz que odiamos tanto os livros que escrevemos um, Inês Pedrosa criticou alguns livros que não considera livro-literatura. É o caso daqueles “que dizem que entretêm mas que a mim me aborrecem ou os de auto-ajuda que acho ditadores.” Considera um livro-literatura “aquele que inquieta alguém”. E indo ao encontro de José Mário Silva, que também viaja através dos livros, Inês Pedrosa, que os considera “a minha pátria, a minha febre, a minha cura”, vê no livro “um escape”, referindo o desassossego das pessoas “que pensam que por mudar de ares mudam de cabeça.” Através dos livros, Inês Pedrosa já viajou até Buenos Aires, Praga e S. Petesburgo. “Os livros que li e leio levam-me a escrever livros. Não sei como se vive sem o calmante das palavras.” Aprender através do livro foi outros dos pontos que Inês Pedrosa assinalou. “Conheci o mundo através da ficção e conheci o coração através da poesia e da filosofia.”

mesa 7

Paula Izquierdo foi a participante que se seguiu. E foi por entre muitas gargalhadas que a psicóloga e escritora acabou por confessar que interpretou mal o tema. Por isso, em vez de ‘Por onde me levam os livros’, a plateia foi brindada com uma intervenção sobre ‘O que vai ser dos livros’. “Calha bem, porque estamos em crise”, gracejou, mas mesmo assim fez referência a um dos pontos já debatidos em apresentações anteriores: o livro como viagem. “Ler um livro é o mais barato que se pode fazer sem sair de casa. Pode levar-nos a lugares longínquos (…) e permite-nos viver todo um leque de emoções sem sair do sofá.” Afirmando não se preocupar tanto com a vida dos livros como se preocupa com a vida dos escritores, dos poetas, dos contadores de histórias, apresentou uma solução bem humorada para rebater a crise do meio literário: “os que visitam as livrarias podiam começar a pagar a entrada.” Afiançou mesmo que, enquanto escritora, o que importa é que sobreviva, que seja lida. O pouco tempo de vida dos livros contribui também para esta crise, pois “ao fim de 40 dias ou menos o livro sai das prateleiras e é reencaminhado para uma trituradora de papel para que dali se imprimam novos livros.”

O bom humor manteve-se com Jorge Arrimar, escritor angolano. “Se eu vos falar de livros que já li, estou a falar-vos de livros que já leram. Por isso vou falar de livros que de certeza vocês nunca leram ou ouviram falar, que são os meus.” E de facto a escrita de Jorge Arrimar está intimamente ligada aos locais onde viveu. É o caso de Ovatyilongo, livro editado em 1975, escrito em Angola “numa altura em que não era fácil escrever” e que o levou a conhecer melhor o seu povo, as pessoas que o rodeavam. Mudando-se para os Açores, deparou-se com o problema de viver sem reparar no que o rodeava. Só quando se apercebeu da realidade que o cercava, é que começou a escrever. “Eu sou muito distraído e se não escrevo passo pelas coisas e esqueço-me delas.” Já em Macau escreveu A Fonte do Lilau e Secretos Sinais, produtos dessa mesma abertura à cidade. Mas ouve um livro que o levou até Angola, antes mesmo de ele lá voltar. Planeta dos Pássaros, escrito nos Açores, “foi o romance que me fez regressar de uma forma tranquila à minha terra-natal.”

Como conclusão desta sétima mesa de debate pode dizer-se que a vários locais levam os livros. E esta viagem pode ser feita pelo leitor, que viaja por entre as paisagens e locais descritos, como pelo autor, que viaja dentro de si mesmo. O que realmente importa é que estejamos abertos a essa viagem, pelo tempo ou pelo espaço, por mundos reais ou imaginários.