Centenas de pessoas aguardavam a abertura de portas do Cine-Teatro Garrett para garantirem um lugar na sala e, assim, poderem assistir à última Mesa do Correntes d’Escritas.
E, de facto, uma vez mais, a sala de espetáculos ficou completamente lotada, com público a ajeitar-se como pôde pelos degraus ou mesmo em pé.
A sessão começou com o anúncio de que Onésimo Teotónio de Almeida, convidado “residente” do encontro literário, nomeadamente desta última Mesa, tinha acabado de ser convidado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para dirigir as comemorações do dia 10 de Junho. As cerimónias vão decorrer nos Açores, Boston e Califórnia.
Onésimo brincou afirmando que Marcelo pediu para que as comemorações acontecessem todas no mesmo dia e que não vai ser possível apenas porque não há nenhum jato que seja capaz de efetuar as três viagens no 10 de Junho.
Já sobre o tema “Entre mim e o que escrevo, o purgatório”, o açoriano afirmou que, se um escritor trabalha em agonia, esse facto deve ser impercetível para o leitor. Além de viver no purgatório por ser escritor, Onésimo afirmou também viver no purgatório por morar nos Estados Unidos da América de Donald Trump. Aliás, o convidado pediu desculpa por ter gozado com George W. Bush em edições anteriores do Correntes d’Escritas e espalhou a teoria de que teriam sido os amigos do antigo Presidente americano a fazer com que Trump ganhasse de forma a Bush parecer um verdadeiro estadista.
Sobre céu, inferno e purgatório, Onésimo abordou, ainda, o pedido de Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, para que os recasados se abstivessem de relações sexuais. “Se para Lincoln o casamento era o purgatório, Manuel Clemente quer torná-lo, agora, um verdadeiro inferno”.
Voltando ao trabalho da escrita, Onésimo afirmou que não gosta de escrever. O que gosta é de ter coisas escritas.
Sobre as histórias que o público das Correntes espera que conte, Onésimo confidenciou que criou uma persona e é difícil sair dela.
Alicia Kopf falou sobre a sua irmã, autista, e do facto de ter precisado escrever para perceber a sua própria história. “Como irmã de alguém com limitações não encontrei representatividade na literatura. Por isso, escrevi a minha história”.
Para Alicia, “o purgatório é um espaço de solidão, onde se pode crescer, não ser interrompido e saber o que se pensa. Entre mim e a escrita há espaço de prazer, de metamorfose, de crescimento. Mais do que purgatório é um jardim de ervas daninhas que posso podar. Um espaço interior onde podemos olhar-nos ao espelho”.
Alicia Kopf sublinhou sentir-se “no purgatório na Mesa do Correntes sendo o público o juiz que está a julgar se o que digo é merecedor, é digno”.
Daniel Jonas abordou um poema de William Wordsworth, do século XVIII, que perdeu três filhos. E, a propósito da morte de uma das filhas, Catherine, com três anos, Wordsworth escreveu um poema onde manifesta a sua culpa por ter sentido, por momentos, alegria. Para o poeta, o resto da vida dele teria de ser um autêntico purgatório.
Quanto ao processo de escrita, Daniel Jonas afirmou desconfiar que a escrita nasça de processos de alegria. Para o escritor e tradutor, só escreve quem está infeliz.
Luís Sepúlveda não concorda com esta última declaração de Daniel Jonas. “Não sou masoquista. Se me dói alguma coisa tomo uma aspirina, não escrevo. Escrever é uma profissão fantástica, é um mito que os escritores tenham que sofrer para trabalhar. Eu, por exemplo, só escrevo quando estou bem”.
Luís Sepúlveda disse não gostar da palavra purgatório, ter que se pagar um preço por alguma coisa que se fez, um castigo. “Quando soube o tema da Mesa
Purgatório é uma palavra que não gosto, pagar um preço por alguma coisa
Pensei se teria alguma experiência com purgatório
16 anos, escola laica, amigo que era um comerciante nato, vendia apontamentos para os exames, perguntou-me se eu escrevia. Nova professora de história da arte, disciplina facultativa, sensual, bonita e jovem, impossível não vê-la. Porque não escreves uma história que tenha como protagonista a nova professora? Uma história picante.
Não sabia ainda muito bem o que era uma história picante mas entreguei a história que tinha duas páginas e meia
O meu amigo começou a distribuir pelos estudantes 5 minutos de leitura, 15 pesos. Mas um exemplar chegou às mãos do director. A única solução seria expulsar-me mas ia estragar-me a vida. Então, purgatório. Escrever programas de rádio e o salário entregar à escola. Hoje o meu amigo é o Ministro da Economia do Chile.