Hélia Correia falava sobre a catarse, a origem do termo e a sua representação pictórica grega – um homem que vomita o excesso alcoólico, pintado num vaso. Vem à baila o teatro grego, em que a encenação é assumida, um propositado “over acting”, como lhe chamam os oficiais da Arte de Talma. Um ritual, em prol da fruição da obra, como a escritora bem realçou, em oposição ao que designou como «o realismo ilusório» que nos norteia hoje. Para acompanhar o que dizia, trouxe à baila a premissa cunhada por Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), quando contratualizou com a cumplicidade do leitor «a voluntária suspensão da descrença», o jogo do faz de conta que permite sonhar, construir e anular, seres, realidades, vidas e mortes, mundos. A Literatura, pois então.

Manuel Alegre juntou-se à conversa, alvitrando como a literatura, essa mesma ou outra, tantas as vestes que pode usurpar com propriedade, poderá ter nascido na caça, do encontro depois das conquistas, quando é necessário fixar e partilhar os objectivos alcançados, registar os episódios de cada surtida, criar ânimo para as seguintes. A caça, a guerra, as conquistas amorosas, os apelos a deuses mais ou menos atentos e complacentes, a mística da sistematização das memórias e anseios de uma colectividade. A Literatura, pois então.

Antônio Torres, contou-nos, à mesma mesa, sobre o telefonema a José Saramago, corria o ano de 1995, para lhe anunciar a vitória de um prémio, antecâmara do futuro Nobel, dessa vez o lusitano Camões. O carpinteiro da jangada mais famosa das letras portuguesas ouviu a novidade e fez o comentário mais inesperado, vindo de quem assentou arraiais na insistente negação da existência qualquer emanação do Divino: «estou me sentindo no altar de Deus». Conheceria ele o famoso provérbio húngaro, “na cova dos leões não há ateus”? Provérbios? Sim. A Literatura, pois então.

O referido Antônio Torres chegou a Portugal em 1967. E sabe-o de cor, porque se recorda da notícia no jornal que comprou, a morte de John Coltrane, o saxofonista imbuído de espiritualidade que nos deixou “A Love Supreme”, um mantra tocado com todas as vozes do seu instrumento para se fazer escutar pelos deuses. Para ser lido pelos deuses.

Porque os Deuses, lêem, muitas vezes, na diagonal. O livro que o traz a Portugal chama-se “Essa Terra” e foi publicado em 1976, para ser depois traduzido nos mais diversos países. A narrativa parte do enforcamento de um homem, desvirtuado pela sina que buscou e lhe fugiu em terras várias. A desilusão numa terra desiludida. «Como é que o maior fracasso do mundo se transformou num grande sucesso editorial», questionava-se ele? É que os Deuses também escrevem, segundo normas próprias, e gostam igualmente de experimentar juntar ideias que parecem distantes. Afinal, estão tantas vezes à distância de quem as escreva na mesma página, na mesma frase, até. A Literatura, pois então.