“Estou muito dentro de mim para ter consciência do que sou”, deixa escapar Isabela Figueiredo, uma das convidadas na mesa ESCREVO PARA ME DESACORRENTAR DA VERDADE com que a tarde de Sexta-feira começa. Poderá surgir a pergunta, em alguns espíritos mais curiosos por formação ou natureza, se há intenção, se é vantajoso para quem ambiciona criar, soltar-se das correntes da verdade. Da realidade, ainda vá…

Em paralelo com estas e outras reflexões, vou entrando nas palavras. Mais à frente, retenho nova frase da mesma oradora. Ou seria agora Isabel Figueiredo quem fala, visto que o referida Isabela é o nome escolhido para assinar a ficção? Misteriosos são os caminhos da literatura; ferramenta e panaceia, bula e vaticínio, súmula e rastilho, causa e consequência: “uso muito a escrita de uma forma terapêutica e para ter o mundo que eu quero ter”, confessa, aparentemente, para nos acamar uma história de flores e bucólica justiça, certificada por cactos que nenhum dos vizinhos iria querer roubar. Apesar de saberem como se proteger da sede há muito.

Realidade e verdade mantém uma dúbia cumplicidade, com tanto de íntimo como de distante, uma espécie de amizade colorida que aceita com naturalidade a dimensão libidinosa, mas salvaguarda um espaço próprio e impenetrável para cada uma das partes. Haverá maior respeito?

José Mário Silva considera que “a verdade não precisa de se dizer. É.”, ao contrário da realidade que, tantas e tantas vezes, necessita de sustentação para não passar por mistificação, fruto da imaginação ou até mesmo intencional narrativa condicionada por humanos interesses. A verdade está acima disso.

Mû Mbana, guineense, canta-nos histórias arrebatando o silêncio total da sala no Cine-Teatro Garrett. É a música das palavras, embaladas na música do timbre da sua voz, hipnotizadas pelo aconchego da sua dicção, calma, pausada, em paz, que nos conduz e passeia. Entrecortando as melodias, autênticos mantras, fala, por exemplo, de alguém que “ouvia vozes, em língua estranha, que não era nenhuma das 36 línguas faladas na Guiné”. Esse alguém é ele mesmo e criamos a imagem de um homem, no topo de uma Babel reinventada, o mar ao fundo e as múltiplas tonalidades que cada idioma nos possibilita trocando cores entre si, numa espécie de sinestesia poética em que os sentidos não trocam de lugar, apenas experimentam o viver do outro – como se fossem realidade e verdade, frente a frente, partilhando o leito.

Saio, dirijo-me à Fundação Dr. Luís Rainha, com a intenção de assistir a uma conversa sobre tradução. A sala está ABSOLUTAMENTE à cunha, persisto uns minutos, acabo por optar por isto, vir aqui, à Sala de Imprensa, confessar-me por escrito. Antes de sair, ainda ouço uma última frase, proferida pelo Michael Kegler, um dos tradutores: “a nossa exactidão exige um afastamento do original”. Parece que continuo na mesma discussão, entre realidade e verdade…

A mesa anterior encerrou com Valério Romão, contando uma história meio surrealista, que lhe aconteceu no Porto. Um arrumador de carros assegura-lhe escutar “um escaravelho a sete milhas de distância”, problema que resolveu tatuando o animal no corpo. Isto é, inscrevendo a sua verdade, na realidade do corpo. Um dos presentes, única pergunta do público, questiona Valério se a história é mesmo verdadeira ou inventada. Tal como no início, ele assegura a fidelidade do relato. Sorrio e comento com o João Paulo Cotrim, ao meu lado, a certeira frase de Boris Vian: “esta história é absolutamente verdade, dado que a imaginei de uma ponta a outra”.

 

João Morales