“Para alguém que estava na advocacia, a escrita trazia um problema; passamos a ter personagens reais”, deixava escapar logo de manhã Alberto S. Santos, na mesa intitulada ESCREVER É UM ACASO DAS CIRCUNSTÂNCIAS. Acabei de fazer a pé Marginal da Póvoa de Varzim, junto ao mar, o sol brilha tão bonito quanto o Inverno o deixa, não acredito que o meu subconsciente esteja receptivo a acasos. Já quanto a circunstâncias, essas, desde Ortega Y Gasset que não nos largam a mão e nos pedem apoio para atravessar as estradas.

Abraão Vicente, nome que numa ficção poderia facilmente metaforizar um Infante com laivos proféticos, guiou-nos também na mesma conversa. “As histórias infantis baseiam-se muitas vezes no medo”, partilha ele connosco. E é certíssimo. Recordo um Dumbo acorrentado e uma criança chorosa com cerca de cinco, seis anos, dilacerada pela crueldade do acto. Uma criança num camarote do Cinema Tivoli que faz os pais abandonar o escuro da sala quando a Rainha Má se faz Bruxa Feia e a atrocidade ganha rosto. O que pensaria essa criança de tudo isto?

Navegamos todos em águas profundas, Ana Margarida de Carvalho reflecte como “o mar é a mais habitada das metáforas”, esse mar ancestral que acolhe cada gota verbal, cada palavra do jorro que contemos e, subitamente, transformamos em discurso, em grito, em apelo, em dedicatória, consoante as… circunstâncias. Contudo, somos também o que fomos e seremos, quase à maneira de Lao Tse, ou de uma recta infinita sem princípio nem fim que estabelece Zénite e Nadir a cada momento, afastando-os cada vez mais, e mais, e mais… talvez por isso Filipa Martins recorda como “qualquer coisa que um escritor escreva é fruto de milhares de milhões de anos”.

Meia centena de metros mais à frente, um dos novos espaços da Póvoa de Varzim, Theatro de seu nome, acolhe José-Alberto Marques, Fernando Aguiar e Emerenciano, para se falar sobre a Poesia Visual. “A poesia é um corpo”, diz logo ao início da sua intervenção J-A M. De corpo e alma estamos nós todos, ali, naquela sala, aqui, neste festival, por aí, olhando as águas da Póvoa e tentando encontrar-lhe metáforas que sirvam as nossas circunstâncias ou ajudem a combater os nossos medos. “Nestas Correntes, nós, público, também somos elos”, afirma acertadamente alguém que assiste à conversa.

A criança que fui continua a comover-se com elefantes voadores que se vêem aprisionados ou alguma Branca de Neve que, tantas vezes sem se dar conta, está na lista da Bruxa de Serviço. Somente que, hoje, as palavras com que lida com esses perigos, com que os defronta, ganharam outro estatuto. É por elas que navegamos.

 

João Morales