“Como fugir ao que foi escrito” foi o tema da terceira Mesa do Correntes de Escritas que, esta manhã, reuniu David Toscana, Harrie Lemmens, João de Melo, João Felgar e Rui Vieira, no Cine-Teatro Garrett. Ana Sousa Dias foi a moderadora desta mesa.
O primeiro a intervir foi Rui Vieira que começou por transmitir que “ninguém nasce escritor, até porque escrever não é um ato natural”.
Para o romancista, “ninguém escreve sem ler”, lembrando que “por trás de um livro ou simples texto está sempre o punho de um escritor”.
Rui Vieira revelou que “não vou fugir ao que já foi escrito nem ao que já escrevi. Nunca fugirei. Não leio os meus livros depois de publicados. Gosto de os folhear. Quanto ao que li que já foi escrito, faz parte de mim. O que leio passa fazer e quando releio passa a fazer parte de mim duas vezes porque também sou feito do que leio ou do que já foi escrito”.
Recorrendo a exemplos da literatura, o autor refletiu sobre o facto de uma frase já escrita abrir uma nova dimensão, dando mesmo origem a uma obra: “e as palavras e as frases fogem dos livros para ensaiarem bailados com os aparos de outras canetas, as nossas, a caneta que cada um de nós utiliza como batuta para tocar a sua música. O que já foi escrito não é de ninguém. Sempre ouvi os escritores dizerem que o livro após ser publicado deixa de lhes pertencer.”
Para Rui Vieira, “hoje, os escritores têm a obrigação de manter uma certa memória viva. Há atrocidades acometidas contra nós, comuns mortais, que não se podem esquecer. Por mais que tenham sido escritas têm de ser mantidas vivas, no limite para que se tente evitar que se repitam. Não podemos fugir. Podemos recorrer ao nosso registo, à sensibilidade de cada um de nós na forma que espelha os seus sentimentos, não podemos deixar cair no esquecimento. Temos de as tornar ou manter literatura. Mas não é fácil.”
Terminou dizendo que “escrevemos e lemos para pensar que não estamos sós”.
João Felgar optou por partilhar com a plateia situações que viveu desde que começou a ser escritor, sendo que até então, era juiz. Depois de exercer em Timor-Leste, decidiu fixar-se em França com a intenção de escrever romances, que é o que, no fundo, gosta de fazer. No entanto, no início ter-lhe-ão dito: “não escreva porque tudo o que havia para escrever sobre a condição humana foi escrito pelos gregos”. Depois de decidir escrever, avançou para a escolha do tema – sobre mulheres e más decisões. Mas também lhe disseram que “Flaubert já escreveu tudo o que havia para escrever sobre isso”. De todo o modo, “entendi que devia escrever”. No entanto, depois da edição da obra, foi-lhe sugerido escrever outro género: “com a profissão que tem, é bom para escrever policiais”. Ao que reagiu dizendo que “não podia escrever sobre os seus casos” e insistiram: “o que importa é que seja a personagem dos seus livros”. Eu que queria ser escritor tornei-me a personagem que escreve livros, contou, acrescentando que o tema do segundo livro também não tinha sido bem acolhido pelos editores. E passando da temática ao estilo, João Felgar também já foi identificado a autores como Gabriel García Marquez e Agustina Bessa-Luís, bem como conotado por ter o seu próprio estilo.
E depois das experiências contadas, o autor passou a acreditar que “a escrita era algo que me transcendia, me ultrapassava”. A história que um escritor escreve geralmente vem ter com ele por puro acaso. Aparece na cabeça estruturada a pedir para ser escrita. Não se escolhe o estilo com que se escreve. As figuras de estilo não se escolhem, surgem-nos no papel, impõem-se. É assim que as coisas ficam belas e nos dão prazer. A escrita não está ao serviço de nada. Existe porque tem que existir.
Harrie Lemmens falou do tema a partir da premissa “Tudo passa, nada fica. Quero lá saber”. O tradutor holandês partilha da opinião de António Lobo Antunes quando diz que não é ele que escreve os livros e é um erro ter o nome dele porque é o leitor quem compõe o livro e é sua interpretação que lhe dá forma. São os olhos que leem que transformam as palavras em algo com significado e que, às vezes, é o contrário do que o escritor quer dizer.
Referindo-se à sua experiência de tradutor, Harrie Lemmens afirmou que “traduzir é inventar o que já lá está, inventar uma linguagem curta que corresponda ao original porque nunca há uma palavra que corresponda completamente noutra língua. Exige invenção”. E neste sentido, confidenciou: “em cada novo livro que traduzo tento colocar uma frase de outro livro que já traduzi”.
João de Melo falou das suas experiências: “o meu rol mais íntimo foi cavando em mim esconderijos secretos nos quais tentei eu próprio esconder-me da minha insuficiência literária. Como ocorreu com todos os escritores que até agora conheci tive pressa em publicar. O primeiro livro representa uma espécie de pórtico aberto à entrada para um sonho longamente amadurecido nas vísceras profundas do corpo. Mas esse sonho logo se desvanece na bulimia dos livros seguintes. Aconteceu-me querer destruí-los ou apagá-los título após título como se pudesse denunciá-los por inexistência e por insensatez da minha parte. Por cada obra-prima que lia vinha-me uma doença chamada repulsa com uma vontade de negação que escondesse provas e alibis de um crime literário que eu não tivera consciência de ter cometido”.
O escritor natural dos Açores contou que baniu os seus primeiros cinco livros publicados entre 1975 e 80, “obras de um rapazinho imaturo e incompetente. Decidi mudar de idade, de música, tempo e território e de linguagem. Os livros que daí para a frente escrevi não passam de sobreviventes. Nunca estarão escritos mas sim inscritos na ordem da minha incompletude literária. Vivo para me autocensurar na autoria dos meus livros. Vou tentando ampará-los de edição para edição contra a calamidade da imperfeição, revendo-lhes a prosa, cerzindo, reescrevendo, sonhando com o apuro de uma criação que acabo por humanizar nos seus humanos defeitos”.
Coube a David Toscana a última intervenção desta terceira mesa que considera que “fugir ao que foi escrito é algo muito pretensioso. Podemos, quando muito, fugir ao que lemos”.
O escritor mexicano referiu-se à literatura, repleta de palavras e resultado do trato que cada escritor tem com essas palavras. Os escritores têm ao seu dispor uma enorme variedade de palavras e só juntando as palavras temos milhões de possibilidades. Também na tradução, surgem muitas versões distintas.
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