Não…afinal não foi bem assim. Os fãs do programa de entretenimento podem respirar de alívio, pois o formato não sofreu alterações. Tratou-se, antes, de uma provocação que os próprios elementos daquele debate resolveram fazer a si próprios e ao público. Uma pitada de humor, porque não?

Humor não faltou nesta Mesa 2 do Correntes d’Escritas intitulada “Não me interpretem mal” com as participações de Carlos Vaz Marques, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira e João Miguel Tavares (moderador).

O comentador realizou o seu “sonho de ser comentador” e começou por perguntar aos elementos da mesa, se alguma vez tiveram medo de ser mal interpretados. A conversa foi decorrendo com a apresentação de alguns episódios da experiência de vida de cada um, salpicados por muitos risos do público, focando-se especialmente em temáticas como a liberdade de expressão, o impacto que o discurso político tem no relacionamento das pessoas ou o poder do humor (ou nem por isso, defende Ricardo A. Pereira) para “derrubar governos”.

No âmbito das interpretações erróneas, Pedro Mexia referiu que já viu dois amigos de infância cortarem relações, numa caixa de comentários online, por causa de posições divergentes na política – “um era de esquerda e o outro de uma esquerda ali ao lado”. Para Pedro Mexia, isso deve-se a uma “subida de tom” nas discussões, que entende não ser nada sensata, de resto, acrescentou, “costumam dizer-me que sou muito sensato, como se isso fosse algo ofensivo, mas o certo é que houve, nos últimos anos, uma estridência na política em que eu prefiro não participar”.

Carlos Vaz Marques admitiu que, “um dia, houve uma professora doutora que, no Facebook, me mandou lamber sabão, por causa de um episódio relacionado com a publicação de sonetos inéditos de Fernando Pessoa. Não sei se ela me interpretou mal ou eu a interpretei mal a ela, mas eu não fiz o que ela mandou. O que leva a pensar que, às vezes, ou estamos no domínio da ironia ou não falamos a mesma linguagem”. O certo é que Vaz Marques não se afirma inibido ou irritado com estas situações, pelo contrário, diz-se “energizado, pois o que diverte nas redes sociais é, por vezes, aquilo provocar um pouco de faísca”.

Ricardo Araújo Pereira lembrou que foi processado judicialmente por algumas personalidades como Zezé Camarinha e Pinto da Costa. Nem sempre as pessoas entendem que o discurso humorístico recorre à ironia e ao exagero. “Tenho ido a Tribunal várias vezes e o que me tem safado sempre tem sido esta ideia: o discurso humorístico é para ser interpretado correctamente, o que pressupões que a gente compreenda que o discurso humorístico recorre muitas vezes à ironia e ao exagero”, afirmou.

Pedro Mexia trouxe à conversa um episódio em que foi mal interpretado num poema do seu primeiro livro, baseado numa história conhecida do Xenofonte, que narra o regresso das tropas à Grécia após uma derrota no campo de batalha: “um certo dia, uma pessoa conhecida aborda-me e diz que gostou muito daquele meu poema sobre os retornados do Ultramar. Eu não tenho nenhuma relação com África, mas achei que não devia responder como habitualmente relativamente aos artigos dos jornais, com o «não disse isso». A minha referência à narrativa grega era muito abstrata, mas aquela pessoa tinha a experiência de regressar de África, depois da independência, e eu não podia dizer-lhe que estava errada, porque ela estava certa. Aquele poema só lhe dizia alguma coisa porque ressoava na sua vida pessoal. O leitor, num certo sentido, tem sempre razão”.

No que respeita ao discurso humorístico e o equilíbrio do poder, Ricardo A. Pereira não concorda que o humor tenha muito poder – “tem pouco ou nenhum” – preferindo esclarecer que o objectivo final do seu trabalho, como humorista, é “fazer rir”, o que para muita gente “é pouco, geralmente aqueles que nunca tentaram fazer rir ninguém. E como acham que isso é ridículo, o riso tem má reputação, por isso, as pessoas estão prontas a admitir que talvez tenha algum interesse se tiver uma utilidade, no sentido em que uma esfregona tem uma utilidade. Se for útil, como por exemplo, para derrubar um governo, então o humor torna-se interessante”.

Os elementos que governaram a mesa de ontem à noite do Correntes d’Escritas valorizaram muito a liberdade de expressão, de resto, um valor ainda por atingir em pleno na sociedade portuguesa, afinal, “40 anos de democracia é muito pouco tempo”…

Pedro Mexia defendeu que “a ideia de criar uma Cultura que não ofenda ninguém é o caminho certo para destruir a Cultura como a entendemos. É virtualmente impossível escrever algo, por exemplo, nos jornais, sem ofender ninguém”.

Ricardo Araújo Pereira lembrou que houve muita gente que não percebeu e criticou os cartazes “Je Suis Charlie” no caso do apoio às vítimas dos ataques ao Charlie Hebdo. “É óbvio que não se tratou apenas de apoiar aquele jornal”, frisou, mas de tomar uma posição e afirmar que “a resposta a um desenho que a gente não gosta não pode ser uma bala na nuca”. A liberdade de expressão deve ser exercida ao mesmo nível: “Ah, ele fez um desenho que eu não gosto. Bandido, vais levar com um desenho de que tu não gostas. Isso é justo. Vou dar-te um tiro na cabeça. Injusto. Essa é a minha sensibilidade. Haverá outras”, afirmou Ricardo A. Pereira. 

Acompanhe o 17º Correntes d’Escritas no portal municipal e no facebook Correntes, onde pode consultar o programa completo do evento, ver as fotogalerias e ler todas as notícias.