Do milagre do bom tempo, pois a chuva deu tréguas ao Encontro Literário, e do milagre do público, que mesmo às 10 horas da noite lotou o Auditório Municipal para ouvir falar de livros. “Loucura colectiva”, chamou-lhe Santiago Gambôa, que a participar na mesa de debate tinha como companhia Eloy Santos, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José Viegas, Gonçalo M. Tavares e Sergi Doria, com moderação de Carlos Vaz Marques.

Encaminhando o tema da introspecção, Eloy Santos recordou que quando começou a escrever “não olhei para a rua, abri as janelas interiores”. O escritor espanhol fez então uma interpretação mais subjectiva do tema, relacionado com a sua experiência pessoal. Frente a uma página em branco abrem-se um sem número de ruas. “A rua não faz o livro, mas sim a impossibilidade de uma rua é que abre o livro”, aludindo assim à liberdade que dá uma página por escrever. A história de Hansel e Gretel serviu como exemplo para o escritor espanhol. Servindo-se as duas crianças de objectos para marcar o caminho que os fizesse voltar em segurança a casa, esse impossibilidade surge quando usam as migalhas de pão para assinalar o trajecto, e essas são comidas pelos animais. “Há aqui um esquema de impossibilidade de continuar para que a aventura comece.” Assim, concluiu, “da impossibilidade do caminho vem a possibilidade do relato. É possível que a rua faça o livro, mas para mim é mais possível que seja o livro a fazer a rua.”

Considerando que a rua tem muita relação com a escrita “mas não tanto com o livro”, o colombiano Santiago Gambôa recordou o desassossego que sentiu quando percebeu que queria ser escritor mas que vivia numa cidade ausente da literatura, Bogotá. “Era melhor ter nascido em Paris, todas as ruas de Paris estão nos livros de Balzac”, referiu, mas Bogotá, onde as ruas têm números e os prédios nomes, não tinha linguagem. Então, com 19 anos, o escritor foi para Madrid estudar e foi lá que percebeu que, mais do que escrever sobre Madrid, queria escrever sobro Bogotá. “Pensei em escrever histórias sobre as ruas da minha adolescência, sobre a amizade, o amor, a traição. A vida tal como ela é aprende-se na rua.” E é na rua “que está a narrativa, por isso falar da rua é falar da arte de narrar.” Tecendo algumas considerações sobre a narrativa, Santiago Gambôa considera que “escrever é a melhor maneira de pensar. A diferença do não escrito é o infinito universo do não pensado.” E se pensar literariamente em algo “já é escrever”, a literatura escrita apenas “transmite a obra, mas não é a obra. O livro é apenas um objecto formal, de tinta e papel”, sendo que, deste ponto de vista, a literatura é um bem imaterial.

Fernando Pinto do Amaral encontrou no tema várias interpretações de rua. Assim, pode ser visto “na perspectiva de quem escreve, na perspectiva da escrita, na perspectiva da rua como fonte de inspiração e também na perspectiva da recepção do livro.” Introduzindo o factor divulgação, o escritor e crítico português considera que no que toca à questão de como os livros chegam às pessoas existe “o espaço de rua”, que permite a divulgação e circulação do livro. Avaliando o tema sob o ponto de vista de quem escreve, o escritor considerou a rua como um espaço de convívio literário, recordando que este foi um “fenómeno visível a partir do século XX, no modernismo, com os manifestos”, sendo que com as novas gerações surgem novos espaços. No entanto, a rua tem que ter algumas características, considerou. “Tem que ter esquinas pois olho a rua como qualquer coisa ambivalente. A casa é um símbolo de protecção mas é também o símbolo da falta de qualquer coisa. A rua estimula a curiosidade. É no exterior que colhemos qualquer coisa, que nos seduz mas também que nos inquieta e nos perturba”, uma condição importante para o escritor que se diz “incapaz de escrever se não houver alguma perturbação. Nesse aspecto, há uma dose de agressividade que a rua implica, que de alguma forma exige que o texto entre em confronto com esse espaço.” As bibliotecas, que hoje funcionam não só como espaço de leitura mas também de convívio e de acesso ao mundo através da internet, mereceram elogios por parte de Fernando Pinto do Amaral. “São um espaço intermédio entre o que se chama rua e se chama casa, a casa dos livros. Estamos de alguma forma preservados da agressividade das ruas.”

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Para Gonçalo M. Tavares “há uma transformação das coisas que vêm da rua para o espaço literário do livro. É pelo absurdo literário que conseguimos mostrar oposição a uma ideia que vem do mundo, da rua.” Estando a palavra ‘sedar’ na origem etimológica das palavras ‘sentar’ e ‘acalmar’, o escritor português considera que a nossa educação “é um somatório de «sentações» (…) Não conseguimos aprender se não estivermos calmos, aprender é no interior e sentados.” Mas, segundo o tema, aprender “é no exterior e em pé. Julgo que se pode aprender de ambas as maneiras, lendo e viajando.” A atenção aos indícios é um ponto fundamental para Gonçalo M. Tavares. “Se não tivermos atenção em relação às coisas tudo é neutro”, considerando que imaginação e informação são dois elementos que ajudam na narrativa. “Só conseguimos pôr as coisas a funcionar se estivermos com atenção a elas”, avisou, sendo que os segredo está “em não transformar as ruas em não lugares, sítios onde apenas passamos. A própria rua deve ser um espaço de leitura.”

Tendo lançado um livro sobre as ruas de Barcelona calcorreadas pelas personagens dos livros de Carlos Ruiz Zafón, em Guia de Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, Sergi Doria analisou este tema do ponto de vista da transformação da cidade espanhola e daquilo que se perdeu com ela, aquando da revolução industrial e também aquando da reabilitação da cidade para receber os Jogos Olímpicos. “Perderam-se cantos que faziam parte da memória da cidade”, lembrou. Cantos esses que Carlos Ruiz Zafón quis preservar nos seus livros, pois perguntou-se quem iria conservar todas aquelas vozes que iam desaparecendo em Barcelona. E partir desses livros, Marina, A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo, Sergi Doria preparou um guia de Barcelona “onde as pessoas caminham com as personagens, não com o autor ou comigo. Observam os edifícios e tentam ter uma cumplicidade emocional com as personagens.” Neste caso pode mesmo dizer-se que as ruas de Barcelona fizeram o livro. Fizeram-no para que a memória não se perdesse e agora fazem-se, através do livro de Sergi Doria, para que os leitores também conheçam essa Barcelona escondida. “Da mesma maneira que somos o que comemos, somos também o que lemos e o que observamos como personagens que somos quando lemos”, concluiu o escritor e jornalista espanhol.

Por último Francisco José Viegas, que lembrou que “encontramos uma série de livros que nos fixam num mapa. Como autor de romances policiais penso que é um sonho imortalizar um lugar, um lugar que venha no mapa. (…) Aquilo que me interessa como autor é contar uma história e essa história passa-se num cenário, em ruas, por exemplo”, dizendo mesmo que lhe é impossível começar a contar uma história sem saber qual o cenário. Contando uma série de histórias em que existe a “falta de coincidência entre o livro e a rua ou a rua e o livro” avisou que a literatura “tem consequências e tenham cuidado porque já perdi vários leitores por ter insultado as suas ruas.”

Foram vários os caminhos percorridos nesta oitava mesa de debate. Várias as ruas apontadas, mas que, da mesma forma que ‘todos os caminhos vão dar a Roma’, todas as mesas de debate foram dar à Literatura.