CE – É a primeira vez que participa nas Correntes d’Escritas?

 

MC – Já é, talvez a terceira ou quarta vez que estou na Póvoa…Não. Já cá estive umas quatro ou cinco vezes e duas delas foram nas Correntes d’Escritas…

 

CE – Desta vez, para apresentar O outro pé da Sereia, obra com a qual também concorreu ao prémio…

 

MC – Sim e é a primeira vez que faço uma incursão no domínio do romance histórico…

 
CE – Como se desenvolve a trama?

 
MC – Há duas histórias cruzadas, uma no presente e outra no tempo passado – os capítulos respeitantes ao tempo passado estão escritos num papel amarelecido…

 

CE – E qual é o fio condutor que as une?

 
MC – O que as liga é uma estátua de Nossa Senhora, legada por um missionário no século XVI – D. Gonçalo da Silveira – com o objectivo de converter o imperador local (em África). O imperador tenta, primeiro, agradar o missionário oferecendo-lhe ouro – o que ele recusa afirmando não aceitar bens terrenos. Então o imperador decide enviar-lhe algumas belas jovens. Uma oferta que é, mais uma vez, recusada pelo missionário com a justificação de que já tem “a quem devotar o coração”, indicando, simultaneamente, a estátua de Nossa Senhora. O imperador apaixona-se pela estátua, que julga tratar-se de uma mulher terrena…No fim, ocorre uma tragédia e o missionário é assassinado e enterrado num local escondido junto à estátua.

Depois, há uma maldição associada ao lugar do assassínio e àquela imagem de Nossa Senhora…

Eu peguei nesta lenda e decidi convertê-la num romance, fazendo com que um casal de camponeses reencontrasse a referida estátua já no tempo presente e a depositasse numa igreja…

Depois a ligação entre as duas histórias vai-se construindo, ao longo do romance. Faz-se no tempo. Há, depois, uma espécie de maldição que une as duas histórias. A maldição prolonga a história do missionário no tempo – prologa-se para o tempo presente – e faz com que a mulher que transporta esta relíquia transporte, também a mesma maldição personificada nos espíritos que povoam o lugar.

 
CE – A pedra  toque é o realismo mágico…

 
MC – É o que eu faço desde o primeiro livro que escrevi. Não poderia fazer outra coisa. Quando se fala de África, a realidade está sempre misturada com o fantástico. Não se trata de algo mágico ou religioso, mas de algo relativamente diferente: há toda uma cosmogonia, um modo de entender como os vários mundos que compõem um universo coexistem em harmonia.

 
CE – A capacidade de acreditar no maravilhoso como contraposição ao cepticismo ocidental?

 
MC – Sim, eu sou cientista, sou biólogo, e aprendi que, em África, uma árvore não é apenas um vegetal. Pode ser transformada num animal ou numa pessoa. Há uma percepção de que as entidades físicas podem viajar entre si…

 
CE – É um sistema religioso diferente…

 
MC – Sim, mas não existe um tempo para definir um sistema religioso. O deus ocidental construiu o mundo e depois isolou-se, demitiu-se, desiludiu-se com a humanidade. Em África, o homem tem uma relação muito próxima com os pequenos deuses: os antepassados. Com o deus distante a relação tem de ser mediada pelo feiticeiro. O homem mais velho do seu clã será sempre sacerdote, no seu tempo. É uma religião que não está institucionalizada. O sacerdote é chefe político, administra a terra, está integrado em todas as esferas sociais…

 

CE – Não há, portanto, uma divisão estanque entre os papéis sociais…

 
MC – Não.

 
CE – Sobre o livro O Gato e o Escuro, um livro que causa um impacto considerável nas crianças como surgiu esta escrita infanto-juvenil, em Mia Couto?

 
MC – Como pensava que nunca escreveria nada para crianças mandei o conto para uma revista que nunca o publicou. Um dia, a Caminho pregou-me uma partida: mostrou-me as ilustrações da Danuta e depois o aspecto profissional do texto juntamente com as ilustrações…

 
CE – Porque pensou nunca escrever para crianças?

 
MC – Não gosto da classificação de Literatura Infantil. Nós escritores escrevemos sempre este género de livros para a criança que há em nós…Este, por exemplo, é um livro que fala do medo. E o medo é um sentimento tão antigo como a necessidade de sobrevivência da espécie…

Aqui há tempos, dei um autógrafo a um menino que tinha lido esse livro. Conversámos um pouco, mas só quando lhe perguntei se ele tinha medo do escuro é que ele respondeu, é que ele falou realmente comigo: “Sim. E Tu?” e eu respondi “Também.” Então aconteceu algo de extraordinário: Ele sentiu-se na obrigação de me consolar e com isso citou-me uma frase do livro como se fosse dele! Para mim foi o melhor prémio literário que tive até hoje!

Mas isso fez-me pensar o quanto infantilizamos as crianças achando que elas não são capazes de entender metáforas e coisas complexas.

Escrevi também um outro livro para crianças, publicado no Brasil, que falava sobre a morte e todas as crianças que o leram foram unânimes em mostrar que compreenderam a mensagem, sem necessidade uma protecção especial…

CE – E a próxima publicação?

 
MC – Vai sair em meados deste ano…e mais não posso dizer (sorriso) … ainda estou a escrever e não sei como vai terminar…