“Já não (se) salva a literatura” foi o tema abordado por este painel de escritores.

Hélia Correia dividiu-o em duas frases: “se a literatura se salva” e “se a literatura salva” para fazer a sua interpretação.
Para glosar a primeira, a escritora reconheceu que “há um perigo que ameaça a literatura que se vem fortificando nos últimos tempos. Há uma ameaça sobre o texto literário que é resultado destes tempos”, acrescentando que “essa ameaça provem da transformação do ser humano perante a tecnologia, mais do que da tecnologia propriamente dita. É sempre o ser humano que comanda as coisas. Portanto, a nossa atitude é que mudou e ameaça a literatura”.

Neste sentido, Hélia Correia apontou três “fatores perigosos que estão a sobrepor-se áquilo que é o comportamento do leitor necessário para reconhecer a literatura”: profundidade, velocidade e tendência para a dispersão. A este propósito esclareceu que “estamos, hoje, perante uma atitude de conhecimento superficial por oposição à profundidade do conhecimento. O nosso encontro com o texto literário tem de ser de profundidade”. Sobre a velocidade com que temos acesso ao conhecimento, transmitiu que “o encontro com a obra literária necessita de tempo e predisposição para dar o tempo à leitura e estamos a perder esse hábito”. Quanto à tendência para a dispersão, alertou que “o encontro com o texto literário necessita de concentração”. Concluiu que estas três ameaças são “poderosas” e “continuamos a negá-las”, além de que “provocam um outro equívoco, entender literatura como tudo o que é livro. Livro não é literatura e outra ameaça provem dessa confusão”.

Para a escritora, “a literatura é algo de tão requintado, elevado e difícil que tem que ser de minorias”, assumindo que fica “indignada pelo uso que fazem das palavras na escrita. A literatura vai sendo atrofiada e esmagada pela pseudoliteratura”.

A reflexão de Hélia Correia terminou contando dois episódios em que “a literatura salva”, literalmente: no primeiro, a salvação deu-se com versos da tragédia de Eurípides e no segundo, com discurso da Oresteia de Ésquilo.

Perante o tema, Germano de Almeida reconheceu que “no conjunto das expressões das artes do homem ainda se atribui à literatura um papel de mãe de todas as outras. As artes humanas têm-se manifestado de formas diversas: música, pintura, escultura, dança”. Tem cabido à música desempenhar um papel primordial ao longo da História. Também o Cancioneiro português teve um papel verdadeiramente revolucionário antes do 25 de Abril e que em muito terá contribuído para o eclodir do 25 de Abril e queda do regime fascista. E onde a literatura foi interdita, a pintura teve igualmente muita importância. Quanto ao papel destas e de outras formas de arte no progresso humano, “literatura foi e é erigida como a rainha das manifestações artísticas”.

Para Germano de Almeida, a visão de que a literatura estará em risco de vida é exagerada: “a literatura já não desempenha o papel que terá desempenhado há poucos séculos atrás, mas nunca correrá o risco de desaparecer. Em última análise, acaba por ser uma espécie de epistemologia para as diversas formas de arte porque é através da literatura que as fazemos entendíveis para as demais pessoas”. Neste sentido, concluiu que “não há risco de a literatura se perder. Porém, é certo que não tem hoje a projeção que já teve no passado”. Terminou com uma citação de Nietzsche usada pelo Presidente da Câmara na Cerimónia de Abertura do Correntes, esta manhã: “A arte existe para que a realidade não nos destrua”.

Antonio Colinas é um estreante no Correntes e há semelhança de Hélia Correia também encontrou dois temas diferentes no tema proposto: A literatura já não se salva e a literatura já não salva, ou seja, o uso do parênteses faz toda a diferença.

Na primeira abordagem, “a literatura já não se salva”, o escritor espanhol referiu-se à competitividade da literatura com outros meios que “pode sair prejudicada”, nomeadamente “a literatura de fundo, a palavra que resiste está em perigo. A literatura tem que competir com outras formas de conhecimento muito propogadas nos nossos dias como a imagem e os novos meios tecnológicos”. No entanto, “a poesia tem que seguir dirigida à imensa minoria, muito especial”.

A propósito de “a literatura já não salva”, Antonio Colinas fez alusão ao livro que vai lançar no Correntes d’Escritas intitulado Harmonia e no qual confluem o ensaio, a poesia e os aforismos e que considera que pode ser recomendado pelos médicos aos seus pacientes levando-o a pensar que a literatura cura e salva.

Para o poeta, “a poesia salvará e, no dia em que não houver poesia, quer dizer que o ser humano teria deixado de ser humano. A poesia é uma via de conhecimento porque vai em busca de tudo o que o ser humano desconhece e que os poetas reconheceram como mistério. A poesia salvar-se-á e nos salvará”.

Álvaro Laborinho Lúcio abordou o tema destacando o parênteses dentro do qual foi aprisionado o “se” e sem o qual seria uma afirmação simples e direta, “clara, embora terrível no seu significado”: já não salva a literatura. E numa abordagem metafórica sobre a salvação, contou “fui-me ao parênteses, tomei-o nas mãos, dele libertei o “se” e nele aprisionei o não. Vendo bem tudo não passava de uma gralha pela força da qual o parênteses saíra do local que lhe pertencia e soltara o não que devia prender para capturar o “se” que muito legitimamente andava livre pela frase. Tudo era agora claro e o tema coisa simples de tratar. Já não se salva a literatura era a ordem e o lugar das palavras. O não agora recolhido dentro do parênteses iria perder força e sentir, até tombar, desaparecer completamente. E o tema da sua formulação final surgiria então em toda a sua plenitude «já se salva a literatura». Quem havia de dizer um parênteses, ainda por cima, mal comportado e insubordinado mas um parênteses, um único parênteses, a salvação”.

Marta Bernardes não tem dúvidas de que a literatura salva, afirmando que “a literatura salva porque eu tenho 36 anos e estou aqui” e partilhou a sua experiência da salvação da literatura: “a primeira coisa que a literatura fez por mim foi condenar-me. A minha primeira relação de salvação com a literatura foi de danação. Salvou-me duma coisa que era enforme e começou a permitir-me formar de mim. E isto é tão verdadeiro que sei o nome de quem me salvou: Silka, personagem da Ilse Losa”.

A escritora e artista revelou que “a palavra salvação inquieta-me” e “o que há a salvar se salvará, mas não se salvará pelas condições materiais”, acrescentando que “à palavra literatura tenho-lhe tanto amor e tanto desconhecimento que nem a quero desvendar toda”.

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