Uma mesa que reunisse Manuel Freire, Manuel Rui, Sérgio Godinho, Vitorino, Vítor Quelhas e Ivo Machado, só poderia ter como tema “Letras & Música”. E foi justamente esse o mote para a conversa entre estes artífices da música e da palavra na última mesa de hoje do Correntes d´Escritas.
Começando pelo silêncio e pela sua importância para a música, Vítor Quelhas, a quem coube o papel de moderador, optou, ao contrário do que poderia esperar-se, por lançar o desafio a um escritor e não a um músico.
Em resposta, o poeta Ivo Machado começou por confessar: “sempre tive uma má relação com a música. No carro não ouço música e nem escrevo com música, mas ouço-a nos sons da natureza”. E, por causa desta sua “má relação” com a música, Ivo Machado preferiu levar o seu discurso para Fernando Lopes Graça que, curiosamente, encheu de música os seus poemas.
De facto, o primeiro livro de poesia do autor açoriano, “Alguns anos de Pastor”, cativou Fernando Lopes Graça, que viria a musicar alguns dos poemas nele contidos.
Ivo Machado recorda, então, a surpresa de receber em sua casa esse produto final, vindo de um Lopes Graça que não conhecia pessoalmente e a futura amizade que viria a nascer entre ambos. Relatando histórias vividas na companhia do compositor, Ivo Machado prestou-lhe, com a sua intervenção, uma justa homenagem.
Manuel Freire, cujas canções são, muitas vezes, o resultado da adaptação de poemas, sendo o exemplo mais conhecido a “Pedra Filosofal”, de António Gedeão, centrou o seu discurso nessa passagem da música para a poesia. “ A minha experiência”- afirmou – “é a de leitor de poesia, desde muito novo, um leitor que mais tarde se depara com a música feita a partir de poemas”. Aqui, Manuel Freire explica a influência que nele teve Paço Ibañez, que musicava poemas, um exemplo que o músico e cantor português acreditou ser capaz de concretizar em Portugal, nos anos 60.
Quanto a Sérgio Godinho, que, ao invés de adaptar poesia, escreve as letras das suas próprias canções, explicou que, no seu processo criativo, começa sempre pela música: “ é a música que determina a forma, a intenção do que vai ser dito e, sobretudo, o ritmo das frases”. Aqui, Sérgio Godinho introduz um novo elemento – o ritmo – e explica: por influência da minha avó paterna, que era actriz, e a quem tantas vezes ouvi dizer poesia, fui criando em mim um ritmo interno, que influencia também a forma como ouço música”. Esse ritmo interno que, segundo ele, existe em cada um de nós, que gere os silêncios e os sons e que é fundamental, tanto na música, como na escrita, como na produção do próprio discurso oral, porque, disse a concluir: “tanto a música como o discurso se fazem de silêncios e os silêncios geram expectativas.”
Recordando um pouco da história da música portuguesa, sobretudo no período dos anos 60 a 80, Vitorino repescou a importância do silêncio na música, lembrando a sua experiência pessoal: “canto muitas vezes com grupos de música alentejana, uma música rural, de gente simples, mas onde os silêncios são usados com uma sabedoria única”.
Do Alentejo para Angola, o moderador passou a palavra ao escritor Manuel Rui, também ele autor de palavras que passaram para a música, como as do hino nacional da República de Angola, ou “Os Meninos do Huambo”. E o escritor, mais do que abordar a poesia, abordou a escrita do romance e o silêncio que o envolve, porque ninguém leria jamais um romance em voz alta, ele está condenado a ser lido no silêncio de cada um: “são palavras para serem lidas, enquanto que num poema as palavras podem ser filtradas pela música”. E o romance, depois de escrito, ali fica à espera que as pessoas vão ter com ele, ao passo que as palavras nas canções, são elas que vão de encontro às pessoas, que as recebem e as cantam, multiplicando-as por vozes incontáveis.