No Cine-Teatro Garrett, as palavras de Almeida Garrett foram, ontem à noite, tema de conversa entre escritores.
O espaço recém-inaugurado acolheu uma sessão de Correntes fora de tempo, reunindo Ana Luísa Amaral, Gastão Cruz, Lídia Jorge e Manuel Jorge Marmelo. “Há livros, e conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles” (Almeida Garrett, in Viagens na minha Terra) foi o ponto de partida para um debate com os vencedores do Prémio Literário Casino da Póvoa, moderado por Carlos Quiroga.
Os escritores convidados foram unânimes em reconhecer que Viagens na Minha Terra, publicado em 1846, é “a grande obra de Almeida Garrett, que marca a inovação na prosa”, assumindo-se como “forma de afirmar uma nova estética e uma nova escrita”.
Partindo do mote, a importância do título foi abordada pelos quatro escritores, em diferentes perspetivas.
Manuel Jorge Marmelo foi o primeiro a intervir lembrando que “há bons e maus títulos. Muitas vezes, há títulos muito pequenos que sintetizam muito bem as obras e há outros títulos enormes que não dizem nada sobre o que os livros são”.
A propósito de nomes curtos, o vencedor do Prémio Casino da Póvoa 2014 lembrou “Metamorfose, Os Maias ou Dom Quixote que, embora sendo muito curtos parecem ter capacidade para resumir aquilo que está dentro dos livros”.
O escritor transmitiu que “há casos em que acontece exatamente o contrário: um título muito pequeno que, aparentemente, teria a mesma vantagem dos que acabei de citar, mas que não dizem nada sobre aquilo que o livro é”. A título de exemplo referiu Ulisses, de James Joyce, e ainda Os Lusíadas, “título que podia estar lá outro qualquer, podia chamar-se “Os Portugueses”.
Em relação a títulos mais longos, Manuel Jorge Marmelo deu exemplo de vários, como o de Rubem Fonseca, também ele vencedor do Prémio Casino da Póvoa (2012): E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, que “não dizem nada sobre o livro apesar de serem enormes”.
O autor de O tempo morto é um bom lugar referiu ainda que “sendo o rosto do livro o título e através dele que estabelecemos o primeiro contacto com o livro, o primeiro olhar para a capa decide logo, naquele momento, se simpatizamos ou se antipatizamos com o livro. Várias vezes, aconteceu-me decidir, pelo título, que eu ai ser amigo daquele livro para a vida toda”. A este propósito, enumerou alguns títulos que o “conquistaram imediatamente”: Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, ou A Jangada de Pedra de José Saramago, A Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, entre outros.
“Há ainda outros livros que, não tendo títulos tão apelativos como estes acabaram por me conquistar não no primeiro mas num segundo olhar. Por outro lado, tenho alguma dificuldade em me lembrar de grandes livros que tenha gostado muito e que tivessem logo à partida maus títulos”, revelou, indicando A Sombra do Vento de Carlos Ruiz Zafón (Prémio Casino da Póvoa 2006) como um “livro delicioso” mas com um “mau título”.
Para Gastão Cruz, “o título é um elemento muito importante do livro”, revelando que a escolha do título sempre foi uma preocupação nos seus livros.
O vencedor do Prémio Casino da Póvoa 2009 começou por identificar alguns títulos mais alusivos à circunstância histórica, passando depois a outra perspetiva, referindo que “há, na literatura portuguesa, uma série de títulos que me parecem marcos no panorama literário português”. A título de exemplo citou Húmus de Raul Brandão.
O escritor passou para a poesia onde refere que “há títulos de uma só palavra”, confessando “eu próprio tenho preferência por esse tipo de títulos. Acho que títulos muito longos, muitas vezes, o leitor tende a esquecê-los rapidamente”.
Gastão Cruz falou ainda do aparecimento de livros com títulos muito fortes, como é o caso de Micropaisagem (1968) de Carlos de Oliveira, “um livro que revolucionou, de alguma forma, a linguagem poética portuguesa dos finais da década de 60”.
Para Gastão Cruz, “há títulos que não seriam de todo dispensáveis”, acrescentando ainda outra ideia a propósito do subtítulo: “muitas vezes não só os títulos têm importância, como até o subtítulo e há, alguns casos em que o subtítulo é tão importante como o título”.
Para Ana Luísa Amaral, “o título é uma coisa muito séria”. No entanto, refletindo sobre a vida e os livros, constatou: “ a vida não tem títulos, a não ser os nobiliárquicos e os profissionais, aqueles que apomos às pessoas ou que elas, mais ou menos, pomposamente se auto opõem. Não títulos a vida. Mas tem nomes, porque os nomes são necessários para tentarmos organizar e por alguma ordem no que não é muito organizável nem parece, por vezes, ter muita ordem, a vida e a literatura”.
A escritora remeteu para a “importância” de alguns títulos e o que estes provocam na “imaginação e na memória”.
A autora de Escuro transmitiu que “no caso da poesia, seja como for, os poemas não precisarão tanto de títulos. Temos sempre uma segunda hipótese, a de referir o poema a partir do seu primeiro verso. Mas não é essa uma forma de intitular?”, indagou, acrescentando, “e um livro que não tivesse título?”.
Ana Luísa Amaral partilhou como surgiram alguns dos títulos dos seus livros, sendo que muitos deles tiveram, inicialmente, títulos completamente diferentes daqueles que acabaram por assumir. Como é o caso do último livro intitulado Escuro que poderia ter sido “Porque outra noite trocaram o meu escuro”.
Para Lídia Jorge, “há títulos, de facto, que ficam, que quase resumem tempos culturais e históricos marcantes. Mas há também títulos que fixam os próprios autores”. Neste sentido, deu o exemplo de Almeida Garrett, que “tudo o que escreveu nos remete para o seu livro Folhas Caídas”.
A primeira vencedora do Prémio Casino da Póvoa (edição 2004) referiu ainda títulos de Maria Teresa Horta, que “marcam o tempo poético e o tempo de luta das mulheres”. Quanto a José Saramago, considera que “o título que lhe dá expressão e que condensa a obra dele e a relação dele com a própria Península Ibérica é A Jangada de Pedra”. Destacou ainda Aparição de Vergílio Ferreira como um “título muito forte que fala de Vergílio Ferreira e de uma literatura que se praticou em Portugal e que ainda hoje tem seguidores”.
Lídia Jorge transmitiu que “atualmente são tantos os livros que aparecem que, se um título não tem força dá impressão que os livros vão sufocar. Há hoje uma dispersão completa e uma tentativa desesperada em evidenciar-se. É tempo de fazermos a nossa economia no meio de tanto desperdício”, advertiu.
Tal como Ana Luísa Amaral, também Lídia Jorge concluiu que “o título é uma coisa séria”.
Para além desta mesa de Correntes fora de tempo, três dos escritores participantes apresentaram, no Cine-Teatro Garrett os seus mais recentes livros.
Sobre Memoráveis, Lídia Jorge revelou que “escrevi um livro que eu quis que fosse uma saudação e ao mesmo tempo como quem morre de olhos abertos, vendo por dentro aquilo que foi a perda de coisas que nós podíamos ter adquirido e não adquirimos”.
O tempo morto é um bom lugar é a primeira publicação de Manuel Jorge Marmelo após ter vencido o Prémio Casino da Póvoa e foi lançado ontem, na nossa cidade. Francisco José Viegas, da editora Quetzal, fez a apresentação do romance, a que o autor acrescentou que “um dos motivos para a existência do livro é a reflexão de alguém que está desempregado e está a viver um “tempo morto” na sua vida”.
O autor revelou ainda que fez, no livro, algo que nunca tinha feito: “reflexão sobre o estado a que o jornalismo chegou”.
Ana Luísa Amaral falou-nos sobre Ara, o seu primeiro romance, e Escuro, o seu mais recente livro de poesia. “Ara é um hino ao amor. É um romance que não tem personagens. Tem várias vozes e fios condutores. Tem duas ideias fulcrais: vergonha é não amar e vergonha é consentir”.
Quanto a Escuro, revelou que “é sobre os tempos por que passamos mas também a própria escuridão que existe na escrita, dentro da escrita”.
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