Isabela Figueiredo começou por dizer que a resposta instintiva ao mote do debate foi de responder “não escrevo para me desacorrentar”. A propósito contou uma história que lhe sucedeu. Tinha que escrever um conto sobre “Revolução” a convite de Carlos Vaz Marques, precisamente num momento em que passava por uma “revolução pessoal”.

Isabela Figueiredo plantara flores lindíssimas numas floreiras na rua por onde passeava os cães, que se encontravam abandonadas. Porém, a origem da revolta dá-se quando os vizinhos começam a roubar as plantas.

Então esta revolta misturou-se com o conto e acabou por contar essa história – mas enquanto, na realidade, resolveu o problema plantando catos nas floreiras, que ninguém roubava mais; no conto, lutou, foi a tribunal com a Câmara Municipal e ganhou a causa. Que bem que lhe soube. “Aquilo fez-me bem!”, confessou a escritora, na tarde desta sexta-feira, dia 23.

Não significa “que me desacorrentei, mas reescrevi a história e o certo é que uso a escrita como forma terapêutica”, concluiu a escritora e jornalista.

José Mário Silva preferiu apresentar um texto previamente preparado sobre o processo criativo da escrita, um processo “martelado”, sofrido, depois de usar muitas vezes a tecla, “delete”…”delete”…

Dizia o escritor que não pertence ao grupo dos privilegiados – que inveja – que escrevem como quem “puxa um fio ao novelo” e as ideias surgem facilmente. Para ele a escrita só aparece depois do “massacre”.

Manuel Rui, apresentado como um “monumento da escrita”, era um dos intervenientes aguardados e foi um dos mais aplaudidos. Agradeceu através de uma “gravata” que mostrou ao público à equipa de funcionários do hotel que recebe os escritores, Axis Vermar, por toda a simpatia e atenção com que mimam os participantes do encontro Correntes d’Escritas.

Manuel Rui trouxe uma história, como não podia deixar ser. Tudo começa com um “acidente” em que é atropelada…”uma galinha”. História de peripécias do povo angolano à volta de uma “galinha sem cabeça”, que afinal acaba no “churrasco”…pois “cabidela” já estava fora de questão.

Estes concidadãos de Manuel Rui passam a existir, porque “os trouxe ao Correntes d’Escritas”. “Eu nunca me desamarrei a nada para escrever, muito menos da verdade. Aliás, muitas das verdades de hoje são as mentiras de ontem, e as mentiras de hoje são as verdades de amanhã. Anda tudo ‘cafuzado’ nas redes sociais com as verdades e as mentiras. O importante é que agora vocês estão no meu texto para uma escrita literária”, declarou Manuel Rui.

O escritor angolano presente em todas as 19 Correntes d’Escritas realizadas na Póvoa de Varzim concluiu: “As Correntes são a espuma do azul do sal, até para lá do horizonte onde o arco-íris amarra os nossos corações!”

Outro africano a intervir nesta mesa foi o cantautor guineense Mû Mbana, que encantou os presentes com o seu contar cantigas, a forma mais tradicional de contar histórias no seu país, onde no dia a dia, saindo para a rua, é habitual ouvir falar seis a sete línguas diferentes. O certo é que, na Guiné-Bissau, são faladas 36 línguas oficiais.

O “cantador de histórias” como se define Mbana estabeleceu o paralelo que existe entre a história cantada e contada normalmente. Deu como exemplo a cantiga, cuja história depois contou à plateia da uma história pessoal – quando era criança ouvia na cama, vindo do exterior, pessoas a falarem línguas estranhas, nenhuma delas do seu país. Nunca teve coragem de contar a ninguém o que ouvia com apenas 7 anos. Só há 10 anos é que cantou a história.

E o certo é que, explicou, a canção passa despercebida, sendo a história quase banal. Mas contada aqui, “as pessoas apercebem-se do quanto era chocante para essa criança aquela situação”. E as histórias foram-se sucedendo, cantadas por Mbana.

Valério Romão foi o último escritor a intervir, tendo optado por contar a história de uma conversa de doidos que manteve com um arrumador de carros, em 2014, à entrada de um hotel no Porto, numa noite fria.

O esquizofrénico a que designou “Vítor”, por já não se lembrar do nome, disse-lhe que ouvia o zumbido de um escaravelho a sete milhas de distância”. Mas tinha resolvido esse problema. Como? Mostrou-o ao escritor despindo as camadas de roupa e ficando em tronco nu – tinha tatuado um escaravelho no peito.

“Tendo incorporado essa realidade demencial, conseguiu domá-la, tendo acorrentado essa verdade a si próprio, tornou-a confortável. É que mesmo o escaravelho zumbindo dia e noite, pelo menos sabia onde ele estava e já não era ameaçador”, concluiu o autor de “10 razões para aspirar a ser gato”.

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